Poesia de não-gente

Há quandos em que é preferível achar poema só em pássaro, água e céu. Alivia a agonia, despeja os cacos que rasgam no fundo, e a gente consegue dormir. Machuca menos que rimar de dentro. Talvez por isso Deus tenha desenhado bonito até mesmo o que não é gente.

As nuvens – e a ausência delas -, as árvores – e a inquietude proibida delas –, e as estrelas – e a distância-castigo delas, todas sabem dançar quando a música vai bem. Mas talvez ao longo dos anos, ao longo das lágrimas em que permaneceram quietas, tenham aprendido a sorrir o sorriso de emergência. O que arqueia em abraço, dá-nos um laço e distrai.

Sejam as serras que buscam em vão nos esconder os horizontes, ou os assobios-crianças dos passarinhos mais desafinados, nada parece acaso. Talvez só faltasse que as palavras não-tão-felizes-assim fossem proibidas de guardar beleza – ou ao menos taxadas por isso -, pra que os tristes desabafos também não pudessem virar poesia. Talvez des-doesse menos escrever sobre chorar, e sorrir de dentro se tornasse atalho. Ainda que a felicidade nunca me tenha deixado de ser a primeira opção.

Intermitente

Pra não nos acostumar com o lugar beato de vítima, tenho a impressão de que a tristeza, a funda, a chorada, quando nos casos brandos, ousa por vezes se sacrificar. Abstém-se por certo tempo, refaz-nos - se não felizes, ao menos indiferentes, esquecidos de chorar -, e se põe guardada, esquerda, escondida. Cochila, triunfante, sobre os nossos próprios travesseiros. E até nos recorda de que ainda está aqui. Alfinete na barra da calça que cutuca às vezes. Mosquito companheiro que barulha eventualmente perto do ouvido. E se o dia e a noite acabam, se se sente a iminência da insônia, existe-te sempre a possibilidade de acordar uma ou outra. Vestir felicidade e se acostumar, de novo, com sorrir. Ou mastigar a sombria dolorida por mais uns pares de infinitos. Em todo caso, as duas acabam acordando. A diferença é qual vai tomar café conosco e qual vai precisar correr atrás, em necessária perseguição. Sem dúvida nenhuma, prefiro fugir da tristeza.

O dia depois

Tem hora que exigimos palavras não por anseio de publicitar. É simplesmente pelo crime de enganar a própria alma. Contar a ela histórias bonitas e difíceis de entender. Encher o enredo de castelos e fantasias, para ver se ela se acalma. Se guarda em conforto o coração, por um tempo que dura um tanto que nunca se sabe.

Nascemos com o dom de acreditar. E, quando agonia, todo mundo acredita. Acredita no de repente. Acredita que exista o que em que a gente não acredita. E, por mais que me pareça a agonia um corpo carente de abraço, seu olhar me só envenena. Sufoca de jeito que o coração fica boquiaberto, calado, dopado. Genuinamente inválido. Certo de que só o incerto não será de todo inútil.

É sensação de mergulho. Aquele som de quase-silêncio, de barulho desgastando, de desespero afônico por fazer-se voz sob a superfície total. Talvez eu devesse agradecer pelas agonias não-sub-aquáticas, que é ao menos menos pior, imagino. Ou desejá-las, pra me guardar n’água quando respirar pesar demais. Pensando bem, nunca vi um peixe chorar.

Tempo de presenteamar

Na quase-esquina da praça iluminada, Cora viu um garoto mal vestido sentado ao meio-fio. Foi lá. Procurou seu sorriso, não encontrou. Procurou-lhe os olhos, e eles se viraram escorridos de choro. Perguntou pelo porquê do choro.

Os olhos dele voltaram ao asfalto. Ela chegou mais perto, cuidado pra não amarrotar o sobretudo amarelo, pôs-se ao lado dele. A avó de Cora uma vez disse que a gente devia fazer uma coisa que nos deixasse feliz na época do Natal. Ano passado, fez cafuné no Visconde, o cachorro, e ficou toda contente. Este ano ela ainda não tinha pensado em nada.

- O que você quer ganhar de presente amanhã?

- Eu nunca ganho presente.

Os olhos dele voltaram a chorar. Num estalo, Cora se lembrou de ouvir o pai contar a Nina que há crianças que não ganham presentes. Nem no Natal, nem no aniversário. Talvez aquele menino fosse uma dessas crianças. Buscou alguma coisa no fundo do bolso, nada. Sem ideias, encarou o prédio à frente, e foi seguindo sua altura. Até o alto. Acabou prédio e começou céu. Cora era fascinada pelas estrelas e achou que ali tinha um presente para o menino que não ganhava presentes.

- Está vendo aquela estrela bem pertinho do alto do prédio?

- Acho que estou.

- É minha estrela.

- Como assim, sua?

- Meu presente. No Natal, existem mais estrelas no céu, não sabia? Papai-do-céu também gosta de enfeitar a casa, e põe mais estrelas de presente pra gente. Aí você mesmo escolhe a sua, e toda noite ela vai estar lá em cima.

- Eu também posso?

- Não escolhendo a minha, fica à vontade.

- Quero aquela ali, perto da árvore, viu?

- Nossa, ela é linda! Mais bonita que a minha. Hmm, alguém me disse que nunca ganhava presentes?

O garoto riu por cima do resto de choro.

- Cora! – logo Nina tinha encontrado a irmã. De longe, viu a caçula (um ano mais nova) abraçar um menino mal vestido que estava sentado no meio-fio. O que você tava fazendo?

- Uma coisa que deixa a gente feliz no Natal. Dando um presente.

- O quê? Um abraço?

- Uma estrela. Ou você acha que esse tanto de estrela no céu não é presente de Natal?

Pisca. Pisca. Acende. Apaga. Apega.

Aquele foi o happy hour mais feliz do ano, pelo menos para Antônio. Do cantinho da sala, bem ao lado da árvore, já havia suspirado vinte e cinco vezes. Mal podia esperar. Viu cada um dos colegas trocar presentes, abraços e elogios – uns sinceros, outros nem tanto. Nas mãos, trazia um presentinho cuidadosamente embrulhado, enrolado em fita. Lembrou do dia em que havia tirado aquele papelzinho - até então, seu melhor presente de natal. Antes de sortear, fechou os olhos com vontade, e pediu em silêncio. Enfim, uma felicidade que tem nome.

Vinte e seis. Mas não chega nunca, meu Deus! A sala agora já era pequena demais. Sorrisos demais. Aplausos demais. Queria pular essa parte. Concentrou-se na árvore. Pisca. Pisca. Acende. Apaga. Apega. 

E ficou nessa, deslumbrado, até que - silêncio. Abre parênteses.

O presente na mão era a denúncia: Só sobrara ela, só faltava ele. O que viria a seguir, todos já sabiam, menos Antônio. Deu um passo à frente, e parou. Era ela bem ali pertinho, com olhar de vou-eu-primeiro-ou-vai-você? Fugiram-lhe as palavras da fala já ensaiada. Não soube o que fazer, sentiu-se desconcertado, como se aquele pisca-pisca estivesse bem ali, no seu estômago. Ela riu do embraço. Adiantou-se e deu-lhe logo um abraço. Para ela, durou menos que um instante, para ele, a eternidade de um encanto. 

Desculpemos o nosso amigo - Pra quem é admirador secreto, papel de amigo oculto é estreia. Trocaram os presentes e cada um foi para o seu canto. Fecha parênteses.

É, tem coisa que só acontece no Natal.