Riacho

Escorriam sem culpa as filhas da Tristeza.

Expulsas no olho do crime, as lágrimas salgadas se dispersaram nas águas sorridas -

Esconderijo perfeito em camuflagem covarde.
E as águas, antes destiladas, agora desalegridas, embargaram a voz, mas se recusavam a estender o delito;
E deliraram - convictas - suas minifelicidades de emergência.

Tristeza veio feito conta-gotas.

Manchou o dia e doeu, de dentro pra dentro. Aqui fora eu ainda era eu: sorriso-padrão e cabelo-a-cortar.

Tristeza embaçou meus olhos e parecia que tinha uma cortina de chuva entre a gente.

Foi susto. Injeção na carne desavisada. Pedra no caminho quando a gente tropeça na pedra.

Falando em injeção, deviam existir vacinas anti-tristeza mais baratas do que o amor.

Devia ser proibido chover dos céus azuis.

Enxaqueca

Hoje na campainha era a enxaqueca doendo desse inconstante gostinho meio agridoce de querer demais experimentar viver. É que tem hora que venta demais e dá vontade de correr. Tem hora que só sumo. Desapareço quinze ou vinte minutos dentro dos fones de ouvido. Nas canções calmas, ou nas mais gritadas. Nos versos que me encontraram um dia só pra me fazer chorar. E me afogo no travesseiro, ou voo recostado nele. Meu canto seguro. Tem uma melancolia fiel sempre desocupada pra mim. Tem dia que mais doce; em outros, tem gosto de bicarbonato. Tem dia também que me esqueço de acordar as alegrias depois do sono - viro perito de desagrados. Cato pedregulhos e os calço sem meia. E caminho mais longe. Até que canso e paro pra viver. Ver que também tem hora que é tudo tão fluido! É que nem andar de bicicleta na descida quando o céu tá lindo e o tempo tá fresco. É se esquecer de ponderar se a gente é feliz ou não. Não precisa nem pensar no que é. Acontece. Sorrir quando se olha no espelho ou quando se espelha num olhar ou quando só se olha pra um outro sorriso mesmo. Admirar o por do sol até nos dias em que Deus nem caprichou tanto. Sentir tanta paz que até a felicidade parece merecer poesia. Mas pensando bem, ela até que merecia, ao menos, não sei, uma ou duas rimas por dia.

Destilado


Fazia tempo que não arrecadava alegrias.

Adotei os dias de resmungo - amando.
Em rotina de máquina de costura, caminhei imperturbável, fugido.
Ora, piques de insanidade: ânsia de lonjura.
Noutras, desmaios de fraqueza: passos largados em soluços.

O coração mandava ir.
O pé direito de qualquer sorte minha era rastejante.
A ferida no calcanhar latejava a cada grão de poeira que o asfalto deixava de absorver.
Tudo, tudo era fé. Era crer no azul, azul de céu e azul de mar.
Fé. Mais por oportunismo que ideologia.


A alma já tinha fechado os olhos e tudo se alternava entre algo como flutuar e afogar.
Decidi afogar, decidi flutuar.
Esbarrei nos arrependimentos e nas iludidas bolhas de sabão.
Flagrei os ponteiros do relógio mais rápidos que o permitido.
Notei estrelas impacientes. Flores e borboletas com medo de nascer.

Mas no desinteresse por rumos, na preguiça das decisões, eu me deixava obedecer.
Respeitava o destino, imponderável, ácido, sim.
Satisfazia-me com a remuneração em pores-do-sol.
Alienado de sempre, eu sorria aos pássaros cantores, aos cachorros mansos e às crianças todas.
E na efemeridade entendi as alegrias.

Me fiz intacto largado de costas sobre o mar.
Achei o azul no alto, e me apaixonei pelo céu.
Era a única certeza de sorriso guardada.
Compaixão perene do infinito.
Lençol eterno de amor

Vencido pela felicidade, agora eu era puro sorrisos e gritos e lágrimas.
Nada era profundo; não tinha oceano em que eu não desse pé.
Era eu nadando no céu liquefeito, e em paz.
Fui gratidão às demais misericórdias.
Um confidente todo à minha vida, graças a Deus.

Cor-de-rosas

Só querer uma manhã de flores e uma tarde de folhas e uma noite de frios. Dormir outonos e invernos completos, até que de tão quieto eu desapareça. Nos frios e nas folhas. Quero abrir mão das palavras, que elas já se recusam. Perdidas em agonia, mal sabem o que querem dizer. Talvez nada queiram, que não existir. Que não costurar conversas inteiras de suas e minhas e réplicas e aqueles cafunés em sílaba-doce, em frase gostinho de beijo-e-abraço, certeza-de-mãe, banquete-de-vó. Ando sentindo falta de vó. Ando sentindo as faltas. Ando paquerando a saudade, escolhendo-a todo dia o meu amor. Aí de tanto aquietar-se, dói. Arranha a garganta daquele jeito que não adianta tossir. E a gente tosse mesmo assim. A gente torce mesmo assim. E impaciência vem, algema as pontas do nosso sorriso e a gente desaprende a se alegrar. Alega que nada vai bem, e deita. Se larga no colchão, se mente que ali está ótimo. Espera anestesia de sono e desliga. Esperando a manhã de flores vir acordar a gente com alfazema e um mundo cor-de-rosas. Ando esperando mesmo um mundo cor-de-rosas, ou só um dia, que seja. Sonhando em resumir a vida em dois últimos pedacinhos daquela barra de felicidade meio amarga que eu já nem lembrava. Em três cubos de gelo nadando em Coca-Cola. Em coberta camisa-de-força quando o despertador já me roubou a noite e eu não consigo escapar da cama. Em ventinho frio - mas não tão frio assim. Só o que basta pra induzir um arrepio e precisar de um abraço.