Palavras-anjos

Eu vou tentar encher o mundo com as palavras-anjos que Deus choveu pra gente. Caíram separadas, longe uma da outra. Naquele dia, foi como se as estrelas fossem as luzinhas dos fogos de artifício, que brilham por alguns segundos, beija-florando pairadas no céu, depois caem. Uma vez aquilo eram palavras. Só as mais bonitas, as mais aconchegantes, aquelas que arrepiam ao pé do ouvido, as que abraçam, as que transformam o dia, as que apaixonam, as que socorrem, as que desabafam, as que fazem a gente sorrir. E fico pensando: e se a gente conseguisse ir juntando esses pedaços, trançando num laço bonito que enfeitasse a porta da nossa vida? Não que falar em sorriso, abraço-apertado, saudade-de-alguém, infinito, chocolate e carinho-de-mãe vá mudar a vida da gente e plantar uma felicidade pra sempre, mas engana tão bem que vale a pena.

Caleidoscópio

Era só chuva, era só um terço, só num quarto, era um sobre muitos avos, serragem de amor descendo do que parecia ser céu. O coraçãozinho meio que agoniava. Trincaram-lhe os olhos e lhe trancaram as ilhas. Era ele ali, preso num monóculo turvo caleidoscópio. Cercado de água. Aflito, ia de rio a riso. De mar amar. Perdia-se no movimento. Amava aquela plantinha emergindo do vaso. Queria cuidar dela e depois vê-la florir. E tinha dia que ela era feijãozinho no algodão - prenunciava que não ia longe. Suas raízes cada vez mais se iam pelo errado. Mas tinha o lado que crescia verde, e ele bastava para encantar. Já se imaginava a rosa, a margarida, a tulipa ou o delírio dalí subindo. Fazendo-se pétala ou pérola. Tornando-se ou não. Ela ainda acarinhável para as suas mãos. Devolver um sorriso a ela era pra ele um crime. Infringia a lógica, beirava o absurdo, beijava o absurdo. Deixava se esquecer de fazer sentido, mas era questão de força. Cavar a trincheira, guardar-se lá, deixar o tempo sumir as folhinhas verdes e só escoar o licor da indiferença. Restaria um quadro com o sorriso dela, um carinho da gentileza inconstante dela. Os dois escondidos num camafeu viúvo. Que ele apertava contra o peito pra ver se desmanchava. Ouviu um som e achou que o tinha quebrado. Era só o caleidoscópio cupido mostrando pra ele outra ela, e lá ia ele com o regador de novo, dar murro em ponta de faca.