Agridoce

Estive mudando os ingredientes da receita eu. Ainda me surpreende como nossos sentidos são facilmente traídos pela superfície. Sempre atraídos pelo vermelho que, podemos jurar, é doce. - Mais duas colheres, por favor, (gosto de coisas doces.). Só que, às vezes, a vida nos leva a provar o resultado pra encontrar algumas respostas às perguntas feitas pelo paladar: certas vezes sente tudo amargo, não entendo a razão. Misturo tudo, e preparo um prato com os ingredientes que amo, e vem a surpresa: é o vermelho amargo. Poxa, que coisa. Vermelho é docinho, é bonito de ver, agrada aos olhos e deixa o prato bonito. Ah, a superfície. Sempre enganados por essa mania ingênua de não desconfiar do suposto agradável. Não que o amargo não seja também saboreável. É sim, e a alguns é mesmo o preferido. O caso é que, em certas horas ele quer estar presente em demasia, acha que nos enganou por completo. Ah, amargo, aqui lhe vai uma lição: nossos sentidos às vezes se anestesiam e concordam por compilar com o que nossa mente lhes disse ser certo. Mas ninguém vive de dissabores. Uma hora um deles desiste, e, por conseguinte todos os outros nos acusam seu sabor. É quando vem a vontade de mudar a receita eu: alterar as doses, trocar ingredientes, provar novos sabores. E amores, e cores, e temores.

Mas o vermelho insiste em permanecer. Não aceita ficar de fora, e começa a querer manchar todas as folhas em branco desse livro de receitas. Alguns ingredientes não aceitam nossa escolha em deixa-los fora de nós, julgam-nos ruins por não gostarmos mais de seus sabores. Sugiro a eles uma pausa para analisar sua própria receita. Aí encontrarão o erro: pararam de cozinhar o seu por querer ter sabor só no meu. Não quero. Esta é a minha receita e só o que pretendo é comer o que me faz sentir bem.

Pois bem, estive mudando a receita eu. Mas, dessa vez, parei de acreditar na superfície e dei chance aos azedos. E também aos doces, salgados, amargos e mesmo aos que não tem gosto nenhum. Parei de acreditar na cara de ruim, no perfume forte, no pré-conceito gustativo. E eis uma grande e doce (mas não vermelha) surpresa: existem muitos ingredientes que preencheriam nossa vida dos melhores sabores se parássemos de gostar apenas da embalagem. E pra fugir desse clichê sem sal, existem também mais várias: Muitos ingredientes, quando sozinhos, nos fazem perder a receita, mas, quando combinados com outro ingrediente certo nos fazem entender o dom de cozinhar; meu paladar está em constante mudança. Portanto, vermelho (mas não doce), não difame minha culinária só porque te quis fora de meu prato. Ainda quero-te como convidado pra provar o resultado, só não mais seu amargo em minha receita. Aos outros, seu mesmo vermelho continua doce, mas me sinto bem em não preferi-lo mesmo assim; As aparências dos ingredientes escondem seus sabores e efeitos em nós (mais uma colher desse conselho, porque gosto de doses duplas nessa nova receita).

É, estive mudando a receita eu. Estive disposta a parar de julgar, e a me importar menos com os que preferem continuar o fazendo (essa parte sim é amarga de difícil). Estive aceitando minhas novas preferências e me aceitando como um ingrediente amargo na receita de outros também. Me comporto de maneiras diferentes conforme é a combinação em que sou posta, e isso é natural. Também não me importo mais em não ser saborosa em todas as receitas. Provei mais, aprendi mais, saboreei mais e amarguei menos dúvidas. Amei mais também, já que dizem ser bom cozinhar com amor. Amei cada ingrediente que me foi proporcionado e o sabor único que cada um tem trazido à minha combinação. Amei as doses amargas por me fazerem rir do quanto são ruins, amei as doces por me fazerem querer ser como elas, amei as azedas que me fizeram encontrar novas combinações pra neutralizá-las. Amei. Tenho amado mudar a receita eu.

A você, vermelho. O que lhe dizer, vermelho? Supostamente tão doce, verdadeiramente tão amargo que faz com que nem sintamos os próximos sabores por um tempo. Uma hora imergimos e deixamos de acreditar somente em sua superfície. Deixe de querer amargar-nos. Amar-nos é suficiente.