Poesia de não-gente

Há quandos em que é preferível achar poema só em pássaro, água e céu. Alivia a agonia, despeja os cacos que rasgam no fundo, e a gente consegue dormir. Machuca menos que rimar de dentro. Talvez por isso Deus tenha desenhado bonito até mesmo o que não é gente.

As nuvens – e a ausência delas -, as árvores – e a inquietude proibida delas –, e as estrelas – e a distância-castigo delas, todas sabem dançar quando a música vai bem. Mas talvez ao longo dos anos, ao longo das lágrimas em que permaneceram quietas, tenham aprendido a sorrir o sorriso de emergência. O que arqueia em abraço, dá-nos um laço e distrai.

Sejam as serras que buscam em vão nos esconder os horizontes, ou os assobios-crianças dos passarinhos mais desafinados, nada parece acaso. Talvez só faltasse que as palavras não-tão-felizes-assim fossem proibidas de guardar beleza – ou ao menos taxadas por isso -, pra que os tristes desabafos também não pudessem virar poesia. Talvez des-doesse menos escrever sobre chorar, e sorrir de dentro se tornasse atalho. Ainda que a felicidade nunca me tenha deixado de ser a primeira opção.

Intermitente

Pra não nos acostumar com o lugar beato de vítima, tenho a impressão de que a tristeza, a funda, a chorada, quando nos casos brandos, ousa por vezes se sacrificar. Abstém-se por certo tempo, refaz-nos - se não felizes, ao menos indiferentes, esquecidos de chorar -, e se põe guardada, esquerda, escondida. Cochila, triunfante, sobre os nossos próprios travesseiros. E até nos recorda de que ainda está aqui. Alfinete na barra da calça que cutuca às vezes. Mosquito companheiro que barulha eventualmente perto do ouvido. E se o dia e a noite acabam, se se sente a iminência da insônia, existe-te sempre a possibilidade de acordar uma ou outra. Vestir felicidade e se acostumar, de novo, com sorrir. Ou mastigar a sombria dolorida por mais uns pares de infinitos. Em todo caso, as duas acabam acordando. A diferença é qual vai tomar café conosco e qual vai precisar correr atrás, em necessária perseguição. Sem dúvida nenhuma, prefiro fugir da tristeza.

O dia depois

Tem hora que exigimos palavras não por anseio de publicitar. É simplesmente pelo crime de enganar a própria alma. Contar a ela histórias bonitas e difíceis de entender. Encher o enredo de castelos e fantasias, para ver se ela se acalma. Se guarda em conforto o coração, por um tempo que dura um tanto que nunca se sabe.

Nascemos com o dom de acreditar. E, quando agonia, todo mundo acredita. Acredita no de repente. Acredita que exista o que em que a gente não acredita. E, por mais que me pareça a agonia um corpo carente de abraço, seu olhar me só envenena. Sufoca de jeito que o coração fica boquiaberto, calado, dopado. Genuinamente inválido. Certo de que só o incerto não será de todo inútil.

É sensação de mergulho. Aquele som de quase-silêncio, de barulho desgastando, de desespero afônico por fazer-se voz sob a superfície total. Talvez eu devesse agradecer pelas agonias não-sub-aquáticas, que é ao menos menos pior, imagino. Ou desejá-las, pra me guardar n’água quando respirar pesar demais. Pensando bem, nunca vi um peixe chorar.

Tempo de presenteamar

Na quase-esquina da praça iluminada, Cora viu um garoto mal vestido sentado ao meio-fio. Foi lá. Procurou seu sorriso, não encontrou. Procurou-lhe os olhos, e eles se viraram escorridos de choro. Perguntou pelo porquê do choro.

Os olhos dele voltaram ao asfalto. Ela chegou mais perto, cuidado pra não amarrotar o sobretudo amarelo, pôs-se ao lado dele. A avó de Cora uma vez disse que a gente devia fazer uma coisa que nos deixasse feliz na época do Natal. Ano passado, fez cafuné no Visconde, o cachorro, e ficou toda contente. Este ano ela ainda não tinha pensado em nada.

- O que você quer ganhar de presente amanhã?

- Eu nunca ganho presente.

Os olhos dele voltaram a chorar. Num estalo, Cora se lembrou de ouvir o pai contar a Nina que há crianças que não ganham presentes. Nem no Natal, nem no aniversário. Talvez aquele menino fosse uma dessas crianças. Buscou alguma coisa no fundo do bolso, nada. Sem ideias, encarou o prédio à frente, e foi seguindo sua altura. Até o alto. Acabou prédio e começou céu. Cora era fascinada pelas estrelas e achou que ali tinha um presente para o menino que não ganhava presentes.

- Está vendo aquela estrela bem pertinho do alto do prédio?

- Acho que estou.

- É minha estrela.

- Como assim, sua?

- Meu presente. No Natal, existem mais estrelas no céu, não sabia? Papai-do-céu também gosta de enfeitar a casa, e põe mais estrelas de presente pra gente. Aí você mesmo escolhe a sua, e toda noite ela vai estar lá em cima.

- Eu também posso?

- Não escolhendo a minha, fica à vontade.

- Quero aquela ali, perto da árvore, viu?

- Nossa, ela é linda! Mais bonita que a minha. Hmm, alguém me disse que nunca ganhava presentes?

O garoto riu por cima do resto de choro.

- Cora! – logo Nina tinha encontrado a irmã. De longe, viu a caçula (um ano mais nova) abraçar um menino mal vestido que estava sentado no meio-fio. O que você tava fazendo?

- Uma coisa que deixa a gente feliz no Natal. Dando um presente.

- O quê? Um abraço?

- Uma estrela. Ou você acha que esse tanto de estrela no céu não é presente de Natal?

Pisca. Pisca. Acende. Apaga. Apega.

Aquele foi o happy hour mais feliz do ano, pelo menos para Antônio. Do cantinho da sala, bem ao lado da árvore, já havia suspirado vinte e cinco vezes. Mal podia esperar. Viu cada um dos colegas trocar presentes, abraços e elogios – uns sinceros, outros nem tanto. Nas mãos, trazia um presentinho cuidadosamente embrulhado, enrolado em fita. Lembrou do dia em que havia tirado aquele papelzinho - até então, seu melhor presente de natal. Antes de sortear, fechou os olhos com vontade, e pediu em silêncio. Enfim, uma felicidade que tem nome.

Vinte e seis. Mas não chega nunca, meu Deus! A sala agora já era pequena demais. Sorrisos demais. Aplausos demais. Queria pular essa parte. Concentrou-se na árvore. Pisca. Pisca. Acende. Apaga. Apega. 

E ficou nessa, deslumbrado, até que - silêncio. Abre parênteses.

O presente na mão era a denúncia: Só sobrara ela, só faltava ele. O que viria a seguir, todos já sabiam, menos Antônio. Deu um passo à frente, e parou. Era ela bem ali pertinho, com olhar de vou-eu-primeiro-ou-vai-você? Fugiram-lhe as palavras da fala já ensaiada. Não soube o que fazer, sentiu-se desconcertado, como se aquele pisca-pisca estivesse bem ali, no seu estômago. Ela riu do embraço. Adiantou-se e deu-lhe logo um abraço. Para ela, durou menos que um instante, para ele, a eternidade de um encanto. 

Desculpemos o nosso amigo - Pra quem é admirador secreto, papel de amigo oculto é estreia. Trocaram os presentes e cada um foi para o seu canto. Fecha parênteses.

É, tem coisa que só acontece no Natal.

O lado de cima do céu

Conto que hoje, de repente, vi o céu pedir socorro. Abafado em nuvens, ele perdia o ar e o lar e o mar de azul claro e azul-azul e escuro azul e quase preto. Os travesseiros-de-anjo se aglomeraram em torno da cidade, teatrando pré-chuva. Abafava as vidas e os ternos e os ônibus, largando mão de permitir um por do sol para o povo. Nem as classes mais altas puderam ver o sol sair do dia e entrar no carro escuro. Partiu correndo, cercado por segurança que fechavam a cara e o tempo quando o céu azul ousava acusá-los de furto. Céu azul insistia. Fraudaram o dia! Céu azul chorou uma lágrima, mas antes que ela molhasse o travesseiro, ele a reteve. Seria a gota d’água. Os travesseiros, dos anjos que choravam por não terem conseguido vaga em presépio algum para este Natal, já estavam encharcados. Mais uma lágrima, e não ia mais suportar. Céu azul engoliu o chorou e levantou a cabeça, pra não deixar chorar de novo. Viu o alto. Notou-se em reflexo o que não via sempre. O lado de cima do céu, fora do alcance das luzes da cidade - que voltavam nos travesseiros dos anjos chorosos desempregados -, estava escurinho. O tanto de noite perfeito pra que os sóis-mirins pudessem cantar. As gotinhas douradas piscavam em perfeita desarmonia. Estrelavam o céu de cima a baixo, daqui ao infinito e além. Os pontinhos brilhantes brilharam tanto os olhos do Céu azul, que Céu azul quis chorar outra vez. E antes que se proibisse novamente, lembrou que os travesseiros deviam chover. Era pra ser assim. A cidade ia molhar, os anjos talvez se fizessem dublês em algum presépio novo, e, sem travesseiros, o céu era puro Céu azul. Azul e dourado, se assim quisessem as criaturas daquele alto. Céu azul pensou em chover metade das estrelas, só pela cenografia, mas foi egoísta e abraçou forte todas. E mesmo sem travesseiro, a cidade dormiu o sono dos anjos.

Véspera de primavera.

Se voltasse aqui, vó, eu lhe daria de presente o botão de uma flor pra amanhã vocês florirem juntas. Daria um beijo no seu pescoço, pra te irritar e pra eu me lembrar do seu cheirinho de alfazema. Ia ficar dengoso uns minutos e aí desmaiar no seu colo, até achar cafuné. Ia te sufocar de novo ao te abraçar. E ia te desejar hoje tudo de mais bonito no seu aniversário.

Por algum motivo, se fecho os olhos, só te penso sorrindo - e isso me acalma. Você está catando alguma manga no quintal, e eu chego de repente. Você me olha, apertando os olhos contra o sol, e sorri. É como se eu quisesse descer pra ficar contigo, mas, antes que eu decida, já acabou, e eu saí dali.

Assim, condenado a só lembranças, enrolo na mão um terço, pra me lembrar de você. Imagino sua voz, quando rouca, insistindo em cantar. E o Tão Sublime Sacramento hoje é hino da sua saudade. Tem hora que te sinto aqui pertinho, pertinho, tem hora que a gente está longe demais. Parabéns, de longe e de perto. Te amo.

Hamornia

E pra ser eu, peguei as palavras atrizes e as palavras repórteres, e as espalhei sobre a mesa, que nem na aula do primeiro período. E fui rindo criança, tranquilo, caçando quais deviam fazer um poema. Tava com sede de verso. De banhar umas duas sensações ou pensações em poesia e pendurá-las depois em algum galho da árvore. Só pra sentirem o vento. Tenho a impressão de vê-las sorrindo ali no balanço ventoso de sob a goiabeira. E me alivio junto delas. Sinto os pés mais leves, o coração mais calmo, e os olhos descansam. Parece que ali, penduradas, Deus pode ler as rimas. Nos meus olhos fechados, adivinho se Ele gostou ou não do que leu. Nunca sei. Na verdade nunca importa, sei só que ele sempre venta mais forte ainda. E vai tudo embora. O eu frágil, o fácil, o fóssil. Sobro carcaça de mais-que-sorrisos e asas de folhas de livro. Paz tanta que minha preocupação maior é pensar por que inventaram errado a palavra "harmonia", sem lhe deixar caber "amor" no meio. Mas sem tempo de achar ruim, declaro: foi erro de digitação.

Riacho

Escorriam sem culpa as filhas da Tristeza.

Expulsas no olho do crime, as lágrimas salgadas se dispersaram nas águas sorridas -

Esconderijo perfeito em camuflagem covarde.
E as águas, antes destiladas, agora desalegridas, embargaram a voz, mas se recusavam a estender o delito;
E deliraram - convictas - suas minifelicidades de emergência.

Tristeza veio feito conta-gotas.

Manchou o dia e doeu, de dentro pra dentro. Aqui fora eu ainda era eu: sorriso-padrão e cabelo-a-cortar.

Tristeza embaçou meus olhos e parecia que tinha uma cortina de chuva entre a gente.

Foi susto. Injeção na carne desavisada. Pedra no caminho quando a gente tropeça na pedra.

Falando em injeção, deviam existir vacinas anti-tristeza mais baratas do que o amor.

Devia ser proibido chover dos céus azuis.

Enxaqueca

Hoje na campainha era a enxaqueca doendo desse inconstante gostinho meio agridoce de querer demais experimentar viver. É que tem hora que venta demais e dá vontade de correr. Tem hora que só sumo. Desapareço quinze ou vinte minutos dentro dos fones de ouvido. Nas canções calmas, ou nas mais gritadas. Nos versos que me encontraram um dia só pra me fazer chorar. E me afogo no travesseiro, ou voo recostado nele. Meu canto seguro. Tem uma melancolia fiel sempre desocupada pra mim. Tem dia que mais doce; em outros, tem gosto de bicarbonato. Tem dia também que me esqueço de acordar as alegrias depois do sono - viro perito de desagrados. Cato pedregulhos e os calço sem meia. E caminho mais longe. Até que canso e paro pra viver. Ver que também tem hora que é tudo tão fluido! É que nem andar de bicicleta na descida quando o céu tá lindo e o tempo tá fresco. É se esquecer de ponderar se a gente é feliz ou não. Não precisa nem pensar no que é. Acontece. Sorrir quando se olha no espelho ou quando se espelha num olhar ou quando só se olha pra um outro sorriso mesmo. Admirar o por do sol até nos dias em que Deus nem caprichou tanto. Sentir tanta paz que até a felicidade parece merecer poesia. Mas pensando bem, ela até que merecia, ao menos, não sei, uma ou duas rimas por dia.

Destilado


Fazia tempo que não arrecadava alegrias.

Adotei os dias de resmungo - amando.
Em rotina de máquina de costura, caminhei imperturbável, fugido.
Ora, piques de insanidade: ânsia de lonjura.
Noutras, desmaios de fraqueza: passos largados em soluços.

O coração mandava ir.
O pé direito de qualquer sorte minha era rastejante.
A ferida no calcanhar latejava a cada grão de poeira que o asfalto deixava de absorver.
Tudo, tudo era fé. Era crer no azul, azul de céu e azul de mar.
Fé. Mais por oportunismo que ideologia.


A alma já tinha fechado os olhos e tudo se alternava entre algo como flutuar e afogar.
Decidi afogar, decidi flutuar.
Esbarrei nos arrependimentos e nas iludidas bolhas de sabão.
Flagrei os ponteiros do relógio mais rápidos que o permitido.
Notei estrelas impacientes. Flores e borboletas com medo de nascer.

Mas no desinteresse por rumos, na preguiça das decisões, eu me deixava obedecer.
Respeitava o destino, imponderável, ácido, sim.
Satisfazia-me com a remuneração em pores-do-sol.
Alienado de sempre, eu sorria aos pássaros cantores, aos cachorros mansos e às crianças todas.
E na efemeridade entendi as alegrias.

Me fiz intacto largado de costas sobre o mar.
Achei o azul no alto, e me apaixonei pelo céu.
Era a única certeza de sorriso guardada.
Compaixão perene do infinito.
Lençol eterno de amor

Vencido pela felicidade, agora eu era puro sorrisos e gritos e lágrimas.
Nada era profundo; não tinha oceano em que eu não desse pé.
Era eu nadando no céu liquefeito, e em paz.
Fui gratidão às demais misericórdias.
Um confidente todo à minha vida, graças a Deus.

Cor-de-rosas

Só querer uma manhã de flores e uma tarde de folhas e uma noite de frios. Dormir outonos e invernos completos, até que de tão quieto eu desapareça. Nos frios e nas folhas. Quero abrir mão das palavras, que elas já se recusam. Perdidas em agonia, mal sabem o que querem dizer. Talvez nada queiram, que não existir. Que não costurar conversas inteiras de suas e minhas e réplicas e aqueles cafunés em sílaba-doce, em frase gostinho de beijo-e-abraço, certeza-de-mãe, banquete-de-vó. Ando sentindo falta de vó. Ando sentindo as faltas. Ando paquerando a saudade, escolhendo-a todo dia o meu amor. Aí de tanto aquietar-se, dói. Arranha a garganta daquele jeito que não adianta tossir. E a gente tosse mesmo assim. A gente torce mesmo assim. E impaciência vem, algema as pontas do nosso sorriso e a gente desaprende a se alegrar. Alega que nada vai bem, e deita. Se larga no colchão, se mente que ali está ótimo. Espera anestesia de sono e desliga. Esperando a manhã de flores vir acordar a gente com alfazema e um mundo cor-de-rosas. Ando esperando mesmo um mundo cor-de-rosas, ou só um dia, que seja. Sonhando em resumir a vida em dois últimos pedacinhos daquela barra de felicidade meio amarga que eu já nem lembrava. Em três cubos de gelo nadando em Coca-Cola. Em coberta camisa-de-força quando o despertador já me roubou a noite e eu não consigo escapar da cama. Em ventinho frio - mas não tão frio assim. Só o que basta pra induzir um arrepio e precisar de um abraço.

Amor era um pardal no quintal dele.

Amor era um pardal no quintal dele: vivia sem, mas cabia. Um dia o pardalzinho chegou cambaleando no parapeito da janela no fundo da cozinha. Ficou lá deitado, ofegante. E ele teve medo de ir ver o passarinho. Chegou perto com cuidado, deslizou o dedo sobre sua cabecinha cansada. Acalmou. O moço buscou um pouco d'água, um farelo de pão, e logo o bicho parecia melhor. Ensaiava um assobio meio que pra agradecer. Não saiu. Ele ficou ali despejado enquanto o almoço estava sendo preparado. O homem observava a janela de quando em quando, só pra ter certeza que ele continuava ali. Depois de almoçar, deu mais uma conferida se o amontoado de penas ainda estava ali, e saiu de casa pra resolver umas burocracias no centro. Voltou, eram quatro e meia. O pardal tinha sumido. O espanto do moço durou três segundos, mais ou menos, aí depois imaginou que ele talvez pudesse ter se recuperado e voado pra outro lugar.

No outro dia, quando o sol ainda estava três dedos acima do horizonte rosa-laranja-azul deitado na serra, surgiu o pardalzinho sobre a garagem, que fica logo pra baixo do parapeito da janela no fundo da cozinha. O moço tava tão feliz! Foi lá de novo, pôs água e pão. Esperou ele vir, foi fazer carinho nele, só que o pardal não deixou, como não haveria mesmo de deixar - era um pássaro, afinal. O homem ficou tranquilo que o pardalzinho estava bem, e foi sorridente pro trabalho.

Mais uma manhã, ainda rosa-laranja-azul no céu, e um pardal no parapeito da cozinha. O moço vinha, agradava o bichinho, sorria pra ele, tentava um carinho (às vezes, o pardal deixava), e ia levar sua vida, um pouco mais alegre.

E assim mais um dia, e outro e outro. Nos dias de chuva, o pardalzinho ficava num cantinho do parapeito onde não caía água. O moço cuidava. Tinha vez que o pardalzinho se inquietava com tanto mimo. O moço entendia. Deixava o farelo num pratinho, pegava o guarda-chuva e saía.

Passaram os dias de chuva, o pardalzinho estava lá. Vinha, comia e voava. Voava, vinha e comia. O moço já tinha dois sorrisos garantidos todo dia. Era um quando ele pousava ali pertinho. Era outro quando o via voar de volta, satisfeito.

Um dia o pardalzinho não apareceu. O moço saiu atrasado pro trabalho só pra ter certeza de que ele não chegaria assim que saísse de casa. Deixou farelo no lugar de sempre, na esperança de que o pardal viesse mais tarde. O moço saiu, um ventou bateu e o farelo sumiu. E o passarinho não veio.

No outro dia, estava ele de volta. O homem não podia estar mais feliz. Pôs o dobro de farelo, esperou uns instantes e dessa vez conseguiu fazer carinho nas penas do pardalzinho. Era sábado primeiro fim de semana de férias e ele ali naquela cidade quieta e calada e dormindo e ele ali sozinho e quieto e calado e sorrindo ao lado de uma felicidadezinha que lhe voava todo dia.

Voltou os olhos pro pardalzinho. E encontrou uma manchinha preta no pescoço do bicho. O moço achou que era sujeira, passou o polegar pra limpar, e não saiu. Engraçado, nunca tinha notado aquela mancha. Lá ficou o pardal por mais trinta e poucos segundos, cansou e foi embora. Nisso ficou o moço pensando.

No outro dia, mais cedo que de costume, acordou com um barulho vindo da cozinha. Sobre a garagem, tinha mais de dez pardais cantando em uma quase-harmonia encantando moço. Via cada um e reconhecia o seu. A cada dia tinha cativado um, achando que eram todos um só. Amor deve ter meio que isso. 

Caneta

Ela é distância exata pra evitar quando converge, dom sutil pra resgatar quando escoa. Não sobra escolha. Vou e me submeto ao seu humor meu. Remeto a mim as correspondências de culpa, só pra ter controle de aonde vão minhas tristezas. Calo esperando, sugiro carinho, tem hora que ganho. E me rendo à sua volta, espontânea, fingida. Meu jejum de palavras e olhares e amares era anúncio de cardume. A isca me achava; o anzol vacilava, vinha e voltava ligeiro, preferia não ficar. Mas enquanto estava, eu ia. Nadava mais pela consciência do sorriso-contagem-regressiva do que acreditava na retidão ou coerência de sentimento. É que esse seu jeitinho me trapaceia. Tinta de caneta que eu sei que mancha. Mesmo assim desenho na mão e aí não sai.

Acordei hoje e parece que o desenho sumiu. Ficou arranhado, como quando a gente cai com a mão apoiada no concreto. Tá ali, marcado, mas parece que vai secar, sumir. Meio que claro que quero que cicatrize, mas já dá pra sentir a falta daquele incômodo.

Aí noutro dia vou e cato uma caneta na gaveta. E rabisco a minha mão outra vez.

Flor de Aurora.

Aurora levantou cedo e saiu pelo fundo da casa da vó. Achou um jardim-cartomante e começou a tirar suas cartas. Nas margaridas, ia cantando bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer. Nos girassóis, bem-me-quer, mal-me-quer. Nas tulipas, frésias, girassóis e camélias, Aurora ia perdendo o sorriso quando elas lhe foram murchando a esperança: acabavam só no mal-me-quer. Ela terminava uma e, antes de se frustrar, achava outra e se decepcionava de novo. Mais uma, e mais outra. E assim foram eternidades. Aurora seguia buscando a próxima flor, pra descascá-la em busca de um destino. Uma hora Aurora esgotou o jardim. Arrancara cada pétala de cada flor. E no fim, mal-me-quer. Como consolo, pensou que era só ter começado diferente: mal-me-quer, bem-me-quer - frágil essa tal de sorte, né? Ia já chorar, aí viu uma borboleta azul voando perto da cerca. Foi até lá. A borboleta veio até Aurora, ameaçou pousar no arco do seu cabelo, mas desistiu. Seguiu em espirais e ziguezagues até debaixo dum manto de ervas trepadeiras. Uma rosa rosa-claro desacompanhada. Aurora sabia quantas cartas tinham as rosas e sorriu. Deixou virgens as cinco pétalas de seda e foi procurar seu amor.

Palavras-anjos

Eu vou tentar encher o mundo com as palavras-anjos que Deus choveu pra gente. Caíram separadas, longe uma da outra. Naquele dia, foi como se as estrelas fossem as luzinhas dos fogos de artifício, que brilham por alguns segundos, beija-florando pairadas no céu, depois caem. Uma vez aquilo eram palavras. Só as mais bonitas, as mais aconchegantes, aquelas que arrepiam ao pé do ouvido, as que abraçam, as que transformam o dia, as que apaixonam, as que socorrem, as que desabafam, as que fazem a gente sorrir. E fico pensando: e se a gente conseguisse ir juntando esses pedaços, trançando num laço bonito que enfeitasse a porta da nossa vida? Não que falar em sorriso, abraço-apertado, saudade-de-alguém, infinito, chocolate e carinho-de-mãe vá mudar a vida da gente e plantar uma felicidade pra sempre, mas engana tão bem que vale a pena.

Caleidoscópio

Era só chuva, era só um terço, só num quarto, era um sobre muitos avos, serragem de amor descendo do que parecia ser céu. O coraçãozinho meio que agoniava. Trincaram-lhe os olhos e lhe trancaram as ilhas. Era ele ali, preso num monóculo turvo caleidoscópio. Cercado de água. Aflito, ia de rio a riso. De mar amar. Perdia-se no movimento. Amava aquela plantinha emergindo do vaso. Queria cuidar dela e depois vê-la florir. E tinha dia que ela era feijãozinho no algodão - prenunciava que não ia longe. Suas raízes cada vez mais se iam pelo errado. Mas tinha o lado que crescia verde, e ele bastava para encantar. Já se imaginava a rosa, a margarida, a tulipa ou o delírio dalí subindo. Fazendo-se pétala ou pérola. Tornando-se ou não. Ela ainda acarinhável para as suas mãos. Devolver um sorriso a ela era pra ele um crime. Infringia a lógica, beirava o absurdo, beijava o absurdo. Deixava se esquecer de fazer sentido, mas era questão de força. Cavar a trincheira, guardar-se lá, deixar o tempo sumir as folhinhas verdes e só escoar o licor da indiferença. Restaria um quadro com o sorriso dela, um carinho da gentileza inconstante dela. Os dois escondidos num camafeu viúvo. Que ele apertava contra o peito pra ver se desmanchava. Ouviu um som e achou que o tinha quebrado. Era só o caleidoscópio cupido mostrando pra ele outra ela, e lá ia ele com o regador de novo, dar murro em ponta de faca.

Sobre guerras e tréguas

Trégua era durante aquela fatia miúda no relógio quando o travesseiro descansava sua guerra. Batalha. Navalha. Migalha. Ou coisa que o valha. Lutava, cortava e restava. Aquele rosto de bigode era só resto. Resto de felicidade, de paciência e de esperança. Deitava o corpo na cama meio que torcendo pra não precisar mais levantar. Entrava ali em seu coma. Organizava suas tristezas na prateleira. Separava por tamanho. Aí depois ia tentar sonhar. Ia imaginar que ela era quase perfeita, seus defeitos eram só pra ele ter certeza de que ela existia. Eles se abraçavam, ela ria o mínimo que precisava pra ele saber que ela estava bem. E quando ela não ria, tinha alguma coisa maior que os mantinha juntos. Uma algema de atrito guardava um no outro. Qualquer distância parecia que era fuga, parecia que era sempre. Ela mostrava os ruídos dele, mas também se machucava. Ele não fazia bem pra ela. Nos dois, a confusão. O ponderar querendo resistir. Vendavam os olhos e deixavam se sentir. Certos, contudo, do inevitável avesso. Viviam, pois, nas tréguas. Dormindo, se esqueciam. Pra quando acordarem, terem aquele gostinho bom de se lembrar. Lembrar que por mais errado que tudo fosse, as tréguas valiam a pena.

Agridoce

Estive mudando os ingredientes da receita eu. Ainda me surpreende como nossos sentidos são facilmente traídos pela superfície. Sempre atraídos pelo vermelho que, podemos jurar, é doce. - Mais duas colheres, por favor, (gosto de coisas doces.). Só que, às vezes, a vida nos leva a provar o resultado pra encontrar algumas respostas às perguntas feitas pelo paladar: certas vezes sente tudo amargo, não entendo a razão. Misturo tudo, e preparo um prato com os ingredientes que amo, e vem a surpresa: é o vermelho amargo. Poxa, que coisa. Vermelho é docinho, é bonito de ver, agrada aos olhos e deixa o prato bonito. Ah, a superfície. Sempre enganados por essa mania ingênua de não desconfiar do suposto agradável. Não que o amargo não seja também saboreável. É sim, e a alguns é mesmo o preferido. O caso é que, em certas horas ele quer estar presente em demasia, acha que nos enganou por completo. Ah, amargo, aqui lhe vai uma lição: nossos sentidos às vezes se anestesiam e concordam por compilar com o que nossa mente lhes disse ser certo. Mas ninguém vive de dissabores. Uma hora um deles desiste, e, por conseguinte todos os outros nos acusam seu sabor. É quando vem a vontade de mudar a receita eu: alterar as doses, trocar ingredientes, provar novos sabores. E amores, e cores, e temores.

Mas o vermelho insiste em permanecer. Não aceita ficar de fora, e começa a querer manchar todas as folhas em branco desse livro de receitas. Alguns ingredientes não aceitam nossa escolha em deixa-los fora de nós, julgam-nos ruins por não gostarmos mais de seus sabores. Sugiro a eles uma pausa para analisar sua própria receita. Aí encontrarão o erro: pararam de cozinhar o seu por querer ter sabor só no meu. Não quero. Esta é a minha receita e só o que pretendo é comer o que me faz sentir bem.

Pois bem, estive mudando a receita eu. Mas, dessa vez, parei de acreditar na superfície e dei chance aos azedos. E também aos doces, salgados, amargos e mesmo aos que não tem gosto nenhum. Parei de acreditar na cara de ruim, no perfume forte, no pré-conceito gustativo. E eis uma grande e doce (mas não vermelha) surpresa: existem muitos ingredientes que preencheriam nossa vida dos melhores sabores se parássemos de gostar apenas da embalagem. E pra fugir desse clichê sem sal, existem também mais várias: Muitos ingredientes, quando sozinhos, nos fazem perder a receita, mas, quando combinados com outro ingrediente certo nos fazem entender o dom de cozinhar; meu paladar está em constante mudança. Portanto, vermelho (mas não doce), não difame minha culinária só porque te quis fora de meu prato. Ainda quero-te como convidado pra provar o resultado, só não mais seu amargo em minha receita. Aos outros, seu mesmo vermelho continua doce, mas me sinto bem em não preferi-lo mesmo assim; As aparências dos ingredientes escondem seus sabores e efeitos em nós (mais uma colher desse conselho, porque gosto de doses duplas nessa nova receita).

É, estive mudando a receita eu. Estive disposta a parar de julgar, e a me importar menos com os que preferem continuar o fazendo (essa parte sim é amarga de difícil). Estive aceitando minhas novas preferências e me aceitando como um ingrediente amargo na receita de outros também. Me comporto de maneiras diferentes conforme é a combinação em que sou posta, e isso é natural. Também não me importo mais em não ser saborosa em todas as receitas. Provei mais, aprendi mais, saboreei mais e amarguei menos dúvidas. Amei mais também, já que dizem ser bom cozinhar com amor. Amei cada ingrediente que me foi proporcionado e o sabor único que cada um tem trazido à minha combinação. Amei as doses amargas por me fazerem rir do quanto são ruins, amei as doces por me fazerem querer ser como elas, amei as azedas que me fizeram encontrar novas combinações pra neutralizá-las. Amei. Tenho amado mudar a receita eu.

A você, vermelho. O que lhe dizer, vermelho? Supostamente tão doce, verdadeiramente tão amargo que faz com que nem sintamos os próximos sabores por um tempo. Uma hora imergimos e deixamos de acreditar somente em sua superfície. Deixe de querer amargar-nos. Amar-nos é suficiente.