O homem que nunca tinha visto o primeiro raio de sol.

Aquele homem já não via sentido em dormir, em sonhar ou acordar depois. Deixou que a felicidade fosse embora e agora se via arrependido, num sentimento terrível. Assim que viu da praia um barquinho em alto-mar, e a claridade que prenunciava a aurora, lembrou quando era pequenino e amanhecia na praia com o pai, que o trazia para ver os pescadores retornando ao raiar dos primeiros lampejos do sol. Nessa época, o que mais intrigava o menino é que ele nunca conseguia ver surgir o primeiro raio de sol. Na maioria das vezes, ele se virava para o pai para perguntar quando ia nascer o sol, e nesse intervalo o astro-rei já tinha aparecido, sem que o menino o notasse chegando. Depois de anos tentando, em vão, acompanhar o amanhecer, ele desistiu um dia. Naquele mesmo dia seu pai o deixou e partiu para o céu.

Mas o infinito que o homem via agora através do barco velejando no mar trouxe-lhe também ideias perigosas. Tinha perdido o gosto por viver, pensava em largar o futuro e partir dali; quem sabe a morte lhe fosse mais gentil. A esposa falecera na madrugada passada; filhos não teve. Tudo o que sonhara um dia menino, sob as amendoeiras da beira-mar, num dia já não existia mais. Ele achava que a vida era como a areia molhada pela água do mar: desenhava e escrevia o que quisesse. Mas viu que quanto mais longe da água do mar, mas morta é a areia, mais difícil é mudá-la, modelá-la. Viu que essa vida, essa areia, acabava escorrendo pelos pés ou pelas mãos. A mesma areia que preenchia a praia enchia também a ampulheta, controlava o tempo, e só uma mudança brusca mudava o rumo das coisas.

Faltava mesmo algo diferente que lhe devolvesse o sorriso, que retivesse as lágrimas do passado. Veio então o ventinho da quase manhã, soprando do mar para ao litoral, e ele ergueu a cabeça. Os fios grisalhos tremularam, em pé ficaram. Queria o homem fosse um sinal divino a brisa repentina... Mas naquele momento sentiu também a areia que irritava os olhos, grãos minúsculos que logo cerraram suas pálpebras. A raiva trazida com aquele súbito incômodo fez o homem levantar, desiludido, desacreditado. Não chutava a areia da praia porque novas névoas arenosas podiam encobrir-lhe os olhos, de novo.

A ideia de reescrever seu caminho deu lugar ao pensamento mais cruel. Estava certo de que era hora de tirar a própria vida. Trêmulo, ele correu ao cais a procura de uma corda que fizesse papel de carrasco. Trouxe um reforçado pedaço que arranjara com um pescador. Escolheu a amendoeira sob a qual tanto refletiu na infância para terminar a tragédia. Enquanto preparava a forca, não pôde mais reter a água que escorria no rosto. Chorava de medo, de angústia, não tinha convicção nenhuma de fazer o que faria em breve.

Sob o nervosismo do fim, sob a árvore do fim, sob a corda do fim, ele abaixou e apanhou um punhado de areia. Então se dispôs a pensar em tudo que de bom vivera naquela triste caminhada, antes que toda a areia escapasse por entre os dedos. Caso conseguisse que naquele curto tempo houvesse espaço para reviver toda boa lembrança da vida, podia ter certeza de que não valia esperar o futuro. Mas se a ampulheta da sua mão fosse ligeira o bastante para sucumbir às recordações...

Vieram família, esposa, escola, trabalho, dinheiro, casa, carro, festas, amigos, namoradas, mas isso vinha e ia antes que metade da areia tivesse retornado ao chão.Veio Deus, vieram viagens inesquecíveis, vieram sorrisos, vieram risadas, vieram presentes... Mas consigo traziam lágrimas e indecisões, sua fé faltava e a areia descia lentamente, descia lenta, lentamente. 

E quando esvaziou a memória, quando já não havia do que de bom se lembrar, não sobrou dúvida ao homem de que sua vida fora em vão. Apesar de tudo e por causa disso tudo, ele literalmente morria na praia. E então enfiou-se pela corda e deu uma última olhada para o horizonte antes de saltar para fora da vida. Nesse instante, ele viu pela primeira vez o surgir veloz do primeiro raio da manhã, que vinha ao encontro dos seus olhos trazendo a felicidade que ele perdera. 

Lembrou-se, é claro, do sonho infantil que quase se realizou tarde demais. Lembrou-se de novo do pai e chorou muito. Fechou os olhos e enxergou um garotinho e seu pai, na madrugada, sentados na areia da praia. Foi quando entendeu quantas lembranças ele ainda guardava, quantos sonhos ele ainda tinha, e quanto amor à vida ainda lhe pertencia. 

Largou logo a corda que incomodava o pescoço, jogou-a longe, no mar. Pulou algumas ondas, queria mesmo era chegar até o barquinho que ondulava mais além. O infinito piscou para ele, e aquele homem voltou à vida.

Coração preguiçoso

Jeito bobo de tentar ser. De bobo querer gostar, querer ser gostado, te viver bem juntinho, sorrir sempre dois, chorar qualquer lágrima sua pra não te encharcar os olhos. E nisso, cabeça para, renuncia, reflete, aflita. Tem hora que a gente sonha com a vida, vida vai e des-sonha. Faz rezar pelos melhores acasos, os melhores silêncios, os melhores encontros desencontros pedaços de minutos juntos em olhares-carinhos. Recusar o racionamento de coração. O poupar sentimento, o economizar angústia. Angústia, angústia, aquela alergia por dentro, lugar-nenhum e todo-canto - incomoda, engasga, puxa, tosse, amarra, segura, sufoca! Mas se sua, refresca, que o depois contigo é recompensa. Torna difícil me dosar os goles de felicidade, a água da torneira dos sorrisos custou a chegar. Veio gotejando, fez-se constante, tornou a soluçar. Mas quando parece que é fim, quando parece que é vão, vêm gotas verdes, não sei se castanhas, suspirar sua persuasão fácil sobre esperança. E inquieta assim minha agonia ateia, meu mero vazio da sua certeza – mas passou. Ela proscreve ante você aqui, prescreve você antes e depois e agora e aqui, você que me aquieta, desagonia. Suspira, pois, e flutua leve, leve, leve, leva daqui o que não és e tudo o que não sou. O resto todo é longe. E, distância, agora, já não te quero nenhuma.