Preciso saber me ver.

Essa vida anda mesmo tão sem vida que mesmo a chance relaxar, se fez hoje tortura pra mim. Corri as horas em busca das palavras certas capazes de libertar o que estava trancafiado aqui, essa vontade de parar sem parar. Não degusto mais os dias, apenas engulo a pressa que tenho pelo dia seguinte. Pra quê? Pra reclamar de saudade depois, pra dizer que dói não ter mais o que poderia ter vivido melhor. Pra dizer que se tivesse outra chance, teria sentido, em liberdade, o surgir de palavras espontâneas capazes de traduzirem meu eu, e não olhar pra esse passar de páginas em busca da rima certa. Mentira. Faria tudo de novo em vazio, preenchido por sopros de prazer pelo sabor do engolir de dias.
Me sinto comendo pipoca no parque: Salgando e doendo cortes até então desconhecidos, que a gente só descobre quando dói o cantinho da boca. É agradável, mas os pequenos incômodos por pouco ultrapassam o prazer do sabor.
De que vale? Deixei roubarem os prazeres, as pausas. Não me permito mais ouvir o que o silêncio sabiamente diz, e fico com a surdez desse barulho de vida. A ida, a saída, o nascer e a despedida. Todos fundidos por esse não permitir que, pela embalagem, diriam que é o viver da liberdade de seguir adiante. Se emoldurar pra caber num quadro, esse é o sabor insípido que essa pseudo-liberdade nos proporciona.
A vida está engaiolando pássaros sem asa. Não basta não poder sair dos arredores, é preciso impedir que mesmo os caminhos baixos sejam explorados, e que todos esses sopros de coragem sejam pela pressa de tentar escapar. Essa vida está é mesmo muito morta, e a rotina que nos engaiola, cada vez mais pulsante e oxigenando nossa falta de novo ar.
Monocromia desse emoldurar-se, são essas as cores que pintam o tic tac dos anos. Engolindo dias vazios que poderiam estar repletos de sabores, de cores. Sempre buscando as palavras supostas capazes de traduzir essa conversa muda. Não há parar. É sempre seguir sem mesmo saber pra onde se vai. E se vai. Indo ou ficando, ainda existe o grito do continue, avance, alcance, evolua, aprenda, inove, surpreenda. Tudo vazio, tudo abstrato. Alcançar o que? Evoluir pra onde se desaprendemos mesmo a sentir. Tem-se corpo, não combustível, mover-se como?
Esse trajeto é de certo incerto. É provável que existam muitos passos entre a dor que sinto e o sabor que o final do caminho prova. O que acontece durante o caminho? Não consigo ver. A luz cega quando me ilumina: fecho meus olhos sob quando ao foco desses holofotes que gritam as rimas erradas, as vírgulas mal colocadas, quando impera meus erros à luz. Existe pra onde possa correr? Correr escorrendo os erros de uma história permeada por goteiras que mancham palavras, mudando a forma como deveria pontuar a linha. Era minha. Não é mais. Foi tomada por gotas d’ása que me voaram daqui.  A luz? Deveria me guiar morada, apesar do meu certo e do eu errada, mas somos nós. Atados, alados de medo da luz. Gotejando em palavras, tentamos pontuar novos parágrafos e contar os passos. Os traços de linhas, os laços de nós, a rima então minha, os rastos de pó.
Essa vida anda mesmo tão sem vida que viver a calma é agonia, permitir-se a pausa é apatia. Estamos embriagados de sobriedade – e de drama também, no meu caso, permitam-me o perdão. Mas o caso é que o caso é legítimo. Sobriedade demais que nos embaça a visão, tira o equilíbrio e nos empurra pra corda bamba. Seguir sempre, avançar, sem saber por onde nem como, e encontrar sorrisos por fazer isso. Não, não. Essa vida anda mesmo sem vida, e se ela assim prosseguir, viver será morrer seus dias. Vale? Não. Reanimá-la é a tarefa. Revivê-la. Pode até estar mesmo sem vida, mas emprestarei meu crédito e depois cobro juros em saldo de dias.



Deixo assim ficar subentendido

Saudade das palavras-lâminas, que hoje já estão cegas. Umas belas ainda resistem, outras delas logo perecem. Carecem de vida ou beijos que as ame. Que as ame ouvir: sopro ou grito. Ou sussurro de frases decoladas no ar. Tem hora que dá pra guardá-las numa caixinha e dar-te em tuas mãos. Tem hora que você não estende as mãos pra guardar a caixinha. Mas, enfim, as palavras, elas fogem, cansam do silêncio e ousam falar. Dizem o que não sabem dizer, furtam sentimentos, mordem quem sente saudade, choram quem se finge feliz e amam quem desiste de amar.

Sílaba em sílaba, o tudo junto junta as partes do que há aqui dentro, que a gente só sente e não sabe o que diz. Meio que os resmungos da angústia que a gente não acha em canto nenhum. É formigamento na alma. Tá lá, incomoda muito e não dá pra alcançar. Só o passar do tempo faz passar. Vira e mexe a gente tem isso. Não dá pra gritar, porque as vozes que doem também são surdas. Irônica e absurdamente surdas. A gente aprende a esconder por dentro, a largar os projetos de palavras nas estantes quebradas onde já se equilibram as sensações. Aí se pesa para um lado, sente-se mais, e a boca derrama versos do que às vezes só é poesia pra gente. E quando se sente menos, ou demais a ponto de doer, preferem-se as palavras magras, estreitas, breves e vazias. O silêncio montado que a gente forja. Mas que é, no fundo, no fundo, só o nosso jeito de falar mais e mais aos ouvidos que nos fingem não ouvir.

Você. Coração, coração, coração. É longe demais daqui onde eu penso e te preciso. É uma superlotação de tanta coisa! Coisa que a gente vive e anota pra não esquecer detalhes de cada sensação. São como cheiros e sons e vultos, um pouco mais implícitos, talvez. Há olhares por acaso, esbarrados sem querer, sorrisos seus de graça, gentilezas espontâneas – que dá pra te ver alegre do outro lado. Do lado longe onde se instalou seu pedaço de mim. Agora, trancado sob suas letras, vou te trancando também. Travando, atravancando, atravessando, entrecortando, entrelaçando, agradecendo. Qualquer coisa, ainda está guardada aqui.

Te ver

Não chove aqui. Não água aqui. Não mágoa aqui. Não magoa aqui! Destoa de tudo os dias que vêm. Os dias em que você vem. Vêm sorrindo, que só sorris. Vem cantando, que só encantas. Vem só sendo, sendo só o que me inspira. Tem vez que foge, que some, que cala, que fecha, que cora, que chora, que raiva, que vida, que faça - do seu jeito os dias continuarem a serem. A serem assim. Meio sem graça, que o resto vem de você. Sua graça que compra os sorrisos do mundo. Só aluga os meus, que quando longe não dá pra estar bem. E quando perto, continua muito longe também. Tem dia que fere. Não saber se saboreio em querer junto, ou se espero de longe saber se é seu sabor. Dá pra sentir enforcar os meus medos, o aguardo desesperado e metódico por uma só decisão impontual. Vida que faço deleite de cheiros, de murmúrios, atravessadas pelo infinito de inércia consentida. Estacionado nesse lugar-comum, nesse lugar-nenhum. A covardia de bastar-me em querer. Se me ilude, aceito como destinação irrevogável. Convencido de que só, só me assusta. Enquanto não me acostuma a saudade dos ímpetos de riscar os riscos e segurar suas mãos. Olhar nos olhos, seus olhos. Tão lindos. Ouvir sua voz falar um pouco sem desviar-se de me dizer de si. De mim. Sem escapar. E só confessa, em tom de pena. Em desafino só o seu falar doce. Que se não, largo meus dedos dos seus, abraço e vou. Passo por passo, reclamar vida à vida que larguei lá atrás. Por frágeis vontades, apegos bobos. E agora a minha vida adora a sua.

Ausente de mim, presente de fim.

Ausentar-me torna presente um futuro mal passado. Cru. Viver ausente do si mesmo faz com que não me sinta preparada para o que está por ser degustado, esse futuro mal passado: meio cru, meio ainda presente. Futuro cru de maturidade, futuro que será um passado sempre presente de arrependimentos e vontades hipotéticas: e se?
Em ausências, me torno apenas leitora dessa compilação de roteiros que se cruzam em minhas páginas, rabiscando uma história sem minha letra, sem minha assinatura. Tomam-me em outras caligrafias que me aproximam do futuro incerto, ainda irreconhecível ao meu paladar. Mal passado. Eu ausente, ­sem estar pronta para tecer meu caderno com as letras trêmulas de quem percorre escrevendo apesar do que pesa. A letra estranha e bonita da história que não sofreu alterações nem rabiscos de um autor que se ausentou e presencia o prosseguir mecânico. Mecânico, estático. De um eu que não aumentou sua bagagem, mas sim deixou peças pelo caminho, diminuindo o que achava pesado pra levar. Não evoluiu. Pobre, pesou-se mais. Pesou-se do vazio, que permeia seus três tempos crus. Pesou-se do passado que carrega como manto, não lhe deixando virar a página, pois as linhas do presente contam as mesmas histórias já lidas, e o futuro é apenas a promessa de mais cópias. Futuro mal passado, cru. Cru como o corpo que segue vazio de alma: ausente. O corpo a ser preparado assim como o futuro insosso, para que possa ser degustado em minha caligrafia, no ponto certo de uma história sincera.
Ausentar-se não me isenta de problemas, medos, sacrifícios ou arrependimentos. Só me isenta e ausenta de mim, deixando espaço para preencher-me por cifras não musicáveis. Ausentar-me presencia o não meu e me serve no mesmo prato o que aceito e o que nego, desenhando um caminho indigesto.
Saia de trás dessa fonte, pega essa caneta e escreve tua história em letras trêmulas, preenchendo páginas com um passado em paz com o que já foi escrito, um presente em rimas e a certeza de um futuro desfecho surpreendente. Inspira tuas letras e expira a melodia escrita no pulsar do alguém legítimo, presente, caligrafando parágrafos carimbados de si.
Ausência que faz presente o silêncio do vazio do eu. Oco de mim, abundante em casca, seco de polpa. Não mais. Ausência que trazia presente um futuro cru. Prepare-se em corpo e alma, presença e calma no ponto de uma história sincera. ­


A vida é bonita, relaxa

Eu quero ver que a tal da vida é simples. Que fica meio complicada só quando a gente se preocupa demais em querer dar risada toda hora, todo instante, em vez de ficar contente pela dor que não tem. Porque os sorrisos, eles vêm. Te digo, vêm sim. São tão brincalhões que tem vez que se escondem, gostam de fazer surpresas, mas acabam voltando. Não por piedade, é por saudade mesmo, de quem os sorri. De alguém que os vive. Que a vida, ah, a vida é bonita, relaxa.

Tem hora, claro, que nada parece bonito, pelo contrário: dá vontade de apagar a luz do mundo e deixar tudo no breu enquanto eu sumo pra outro canto. Mas aí, quando ficar cansativo, faz o seguinte: rima, canta, grita, corre, pula, beija, dança, voa, sobe, desce, nada, olha, sente. Deita, dorme, sonha, e faz de conta que é só isso. Imagina que, a partir de agora, tudo o que é problema na vida deixa de ser problema nosso. Imagina que agora eles vivem só, por si só. Dão seu próprio jeito de se resolverem. Ou de se esconderem. Pra que a gente viva o que tem que ser vivido. 

A gente vai acabar vendo que muito do que parece ser problema na verdade parece que é medo. Só. Medo que a gente chama de problema, pra forçar uma condição adversa pra nos impedir de viver de um jeito que a gente acha que deve ser melhor. Por isso que nos sonhos a gente fica tão feliz às vezes sem saber como. É que fica tudo meio que na beirada, no quase, no limite do ser feliz a todo custo ou deixar de lado o perigoso. Aí a gente dorme, desliga essa barreira anti-vida e os sonhos nos abrem os frascos de felicidade. E derramam, sorrindo. 

E quando passa o aperitivo, é susto. A gente acorda decepcionado por saber o quão bom dava pra ser. Se a gente falasse mais, tentasse, acreditasse, ousasse, fizesse em vida todos esses subjuntivos clichês de epitáfio, talvez a felicidade-amostra virasse pão nosso de cada dia, sorriso de degustar mais vezes. Se a gente fosse como quando o medo some, dava pra deixar a tristeza intraduzível e ininterpretável, só à espera da alegria vir matar a saudade. 

Se demorasse, mais sorrível seria quando chegasse. Ou então, como surpresa, ela chegaria rapidinho, como quando vem você falando doce sem a gente nem esperar.

Última página de caderno

Quero despreocupar-me, entender que consequência é possibilidade, não obstáculo. Arriscar, igual a gente faz na última página do caderno: testa a caneta que parece estar falhando, e ela volta a escrever. Tenta desenhar uma pessoa, mas só saem alguns palitinhos tortos, aí a gente rabisca por cima ou arranca a folha e joga fora. Mas também nem por isso deixa de rabiscar. De riscar. De arriscar. De tentar achar o que nos faz bem, se é que isso existe plenamente em algum canto dessa vida. Mesmo assim, apesar da folha arrancada, o caderno continua tendo sua última página, sua tela de rascunhos, seu quintal de coragens, de medos, de dúvidas.

Imagina se só existissem “primeiras páginas”, onde a gente escreve bonito com uma letra forçada, que não é a nossa, só pra parecer que tem algo começando bem, começando diferente, começando a mudar. E muda - só para pior. A letra vai ficando mais feia, vai dando preguiça de manter aquela boa imagem. Tem gente que não gosta de mostrar o final do caderno pra ninguém, acho que é porque é meio que como funciona com a vida da gente. O início, superfície, é nossa cara de paisagem, a boa imagem que toda manhã a gente se força a passar pra evitar que nos perguntem o que é que temos, e pra evitar aquelas respostas “não é nada”, que dói mais pra gente que sabe que está mentindo do que pra quem ouve e sabe que é mentira. Aí as páginas vão sendo passadas pra trás, vai ficando longe aquela capa bonita, e tudo vai ficando mais a cara do que a gente é por dentro. 

Aquelas linhas que vem impressas pra tentar orientar a gente já perderam o sentido, eu as preferia longe dali, ou então retorcidas, erradas, pra se adequar à dificuldade que é a gente. A gente agente de ser. De ser não como “pode ser”, mas de ser como a alma da gente pede, como o que o coração reclAma, suplica, meio em silêncio, meio em sem-risos. Não fala muito porque nasceu com medo, mas é ele quem mais quer nosso bem. E o racional da gente não abre mão de decidir. Decidir errado, nunca de ceder ao mapa da felicidade a decisão dos rumos, dos prumos.

É, vou ver se mando uma carta para o senhor impera-dor da razão, ver se o convenço. Ver se o convenço de que minhas linhas não são preenchidas com razão, mas escritas aos trancos, ao ritmo do que o coração impera, ao som das letras que circulam por ele, oxigenando o refrão. É o que acontece nas primeiras páginas: tentamos imperar ritmo ao que circula do coração, forçando as letras para que pareça uma bela história. Letras bonitas que escrevem o vazio do que não é sincero. Não adianta. Logo ele deixa de caber em linhas. Transborda e pulsa letras arrítmicas de uma história real. De novo, a consequência é possibilidade, não obstáculo. Letras bonitas não deveriam moldar o ritmo da minha história. Porque não adianta, logo o coração deixa de caber em linhas, ou de acabar em linhas, quando não bastar sentir demais.

as-sombras.

A sombra de dias que me assombram as noites. Assombra por lembrar-me que já estive guardada pela nuvem que hoje me persegue em tempestade, chovendo em meu guarda-chuva gotas de um passado seco de boas memórias. Passado seco, mas que me molha os olhos e a paz de prosseguir. Desaguando tento escoar o que o assombro em nuvem trouxe até mim, molhando meus dias num dilúvio de coisas que gostaria de ter enterrado na gênese dessa lágrima.

Sigo protegida por um frágil guarda-chuva que me guarda do que gostaria ter doado ao vento. Me guarda das sombras do eu engavetado que evapora-se e materializa a gota que transborda meus olhos. Me transformei em parte desse ciclo de águas assombradas de um eu deixado pra trás. Deixei o eu, mas a nuvem persiste em me fazer sombra. Deixa chover. Deixa chover o que me molha do eu, hora de abandonar o velho guarda-chuva que agora vai guardar-me da covardia. Deságue sobre mim o que deixei secar lá atrás. Deixa chover e molhar o que eu fui, sou e serei, numa fusão que irá unificar meu mar.

Dos meus olhos agora sairão apenas as águas poluídas por arrependimentos. O que ficar será legítimo e não mais desaguará. Deixa chover, que o assombro dessa sombra de passado já secou, unificou o presente, fortaleceu o futuro. Deixa chover, aqui dentro já é sol.