Sentidor

essa sinestesia toda
anestesia meu tudo-junto
sem ar-dores e amores, quero
sonhar cores e sabores, espero,
na dúvida do que deveras sinto
nessa saudade lúcida que te minto.

grito seus olhares pra que voltem
mas meu sorriso não lhe é mais palatável
meu cheiro já te fez amarga e amiga e
a migalhas meus outros quereres quaisquer

e no BARULHO cego desse seu perfume doce,
c        o       r     a    ç   ã   o    a   m o rtece.
e se amordaça,
mas
    se der
             (r)

                a

                m

                a.

Amortecente

E escrever esse nada, e escavar esse nado, como? Cravei braçadas vagas e perdidas e me vejo largado em alto-mar. Sem medo, sem nada. Não tem nem aquela música triste de fundo. Parece que briguei comigo mesmo e deixamos de conversar. Porque tudo vaza das mãos, vaza do pensamento, o que começo a sentir não se sustenta no peito e cai antes que eu busque uma caixa pra guardar os sabores. Só não se vaza da boca, nem em palavras nem berros nem beijos nem risos. Sou riso inerte. Não-rimas. Não ri mais. Só lamenta. Silente. Carente. Carente. Somente. Somente a carcaça da melancolia acostumada. Que se acostumou a melancolizar os dias bons, em notas novas nonas sinfonias quebradas em cima do meu coração surdo. Não sinto o fogo do mundo, não mudo o gosto insosso do fundo, não fuço o insano da vida.

O manancial de águas claras sumiu de mim, levou junto meus olhos. E a alteridade se afogou, acorrentada à alma minha que desexistiu. Sem que eu pudesse intervir, sumi do que me completava as metades, os terços, os quartos sem janela onde eu mergulhava em tudo que me fazia sentir e pensar como eu mesmo. E de uma hora para outra, fugi pelos poros daquela parede, e me restei, enfim, subjugado pelo neutro sentir só o tudo e o nada. O que eu fui e o que eu ando sendo. E esqueci como é sentir o resto.

Quando, às vezes, meus sonhos rompem a insônia e me visitam na desestrelada desatrasada desastrada noite, é como um chuvisco de caos no deserto de emoções que eu não sinto mais. Fluem incompletas caóticas randômicas saudades arrependeres amores pavores pedaços passados projéteis para algum futuro suponho eu. E faço de tudo para então chorar. Mas é deserto cá dentro, também. A lágrima foi habitar alguém menos frio, e agora lamento em palavras, e na ausência delas, e na veemência delas, e na demência aturdida de cada uma delas, de cada vírgula, que no fundo só tem vocação para reticências, mas nada decide. Frases aleatórias e descombinadas, mas que, quando orações, me satisfazem.

E me escapa um sorriso que eu não entendo, mas soa como cócegas na alma. Mais profundo que tudo, mas pro fundo de tudo é que vai nossa felicidade - e digo isso porque acabo de me lembrar de quando eu entendia o que era estar feliz. Me arrependo por, em vez de ter tirado foto da minha alegria, não ter aprendido como se repetia aquilo. E tem hora que eu me pego desejando que o depois durasse o mesmo tanto que o durante. Que aí a saudade e o arrependimento mal teriam tempo pra criar raízes e a vida ficava mais leve. Ficava menos, ficava leve, leve embora os excessos que não me fazem. Essa quase mutilação, inútil fração de segundo entre a amnésia que conforta e a claríssima memória, descrita em detalhes dentro da alma. Entrega-nos um “cale-se” coerente - nunca se ousa argumentar com o passado.

Mas agora já foi, já fui. Parece que ouço ao longe um zumbido verde. Esperança. Foi o nome bonito que dei para esse barulho que me assovia direto. Converso com ele toda manhã, e ele sempre responde. Ecoa, na verdade. Mas me ouvir é acalento. Agora só falta achar um espelho e me ver sorrindo. Achei que a metamorfose absurda dos dias de inverno só me tivesse deixado a casca. Mas não. Ainda está tudo aqui, eu é que estou meio cheio de mim, meio vazio de mim.

Morada Pulsante.

Corações selvagens não podem ser domados. O meu talvez não tenha a riqueza da coragem para ser nomeado selvagem, mas tem a fragilidade do desejo de ser livre.  E dessa forma é também indomável. Inapreensível. E livre. Livre do peso das certezas. Livre das imposições alheias. Ele caminha por si próprio, rumando sem rumo, remando sem prumo num mar baldio de sentimentos. Caminha livre procurando livrar-se de quem se prendeu a ele, deixando pra trás os débitos dos antigos habitantes que nele, um dia, encontraram morada. Moraram. Marejaram pelas águas vermelhas que por ele correm. Hoje, deságuam pelas quedas que despencam do olhar. Quedas d’água. Quedas mágoas. Quedas tréguas que permitem escorrer quem não mais mareja aqui. E aí, deságuam. Desabam dos olhos o que minha morada pulsante não permite mais habitar. Fechou-se. Estancou-se dos sangramentos. Saturou-se dos cortes e hoje busca a sutura capaz de fechar os portões de casa. Venderemos a propriedade, vamos morar de aluguel. E quando algo impedir-me de pagar a estadia em suas águas, seguirá também eu sem morada, até que sua maré me leve pra longe encontrar a praia. Sairei por olhos marejados. Seguirei também desabando pelos olhos alheios. Ou caindo de sorrisos felizes por me verem partindo. Não importa. Essa morada em hipertensão só quer se ver livre da prisão. Segue com a fragilidade do desejo de ser livre, reformando a casa em que muitos não souberam habitar. Dele saem marcas em barcas carregadas dos que sairão pelo olhar em deságue. Partem dos olhos marejados que os vê marejar oceano a fora encontrando outras marés. Que a brisa o leve para onde deseja. Eu? Eu sigo remando por um coração amando ser livre. Não. Não mais farei dele morada. A cura foi demorada, fizemos a escolha errada e agora é preciso ir. Segue pulsando e livrando, remando seu amando para longe daqui.