Espelhador

Ego estranho, instável. Egoísta. Dependente de amores para me mostrar os lugares em que eu não sou. Pena que eu não saiba amar. Talvez não me caiba amar. Não me caiba mais que eu cá dentro de mim. Não, não pode ser. Jurava que eu tinha visto um pedacinho batendo descompassado do meu resto quando sentiu outro coração passar por perto de mim. Foi por isso que tudo meio que ficou esquisito. Meio difícil de falar. Porque emergir desse egoísmo é estar imerso num oceano imenso de gelo. Onde eu me derreto sozinho por quem às vezes me faz todo sentido, outras vezes me parece tão fria. Mas o próprio gelo é frio, a saudade é fria, a solidão esfria. E por gostar de frio, acabo em insistir num afeto oco, vazio, rouco, tardio, louco, vadio, pouco, baldio. Num ziguezague de coincidências e discrepâncias que sacam a rima e a destroem em ruído. Que fazem pouco de mim, desse eu que é tanto ego. Que tenta se ser mais um pouco mas não alcança. Ainda bem, pois se me derruba, arruína-me e eu deixo de ser. De ser, de sentir, de amar, de sonhar, de vivermos. Porque hoje minha maquete para o futuro é feito um viveiro de lembranças e de passados, de onde copio esperanças pra quando eu acordar amanhã o mundo ainda fazer sentido. O difícil é quando nesse otimismo forjado eu mergulho fundo e me orgulho, imundo, de em tudo acreditar. Então é tudo dicotomia, tudo incerto e ambíguo. E de incrédulo me despeço e despenco, quando me assusta o outro dois, a outra face, oculta e adulta de estar. O eu que desconheço, o seu que me apetece sorrir e dormir. Dormir pra sonhar o que não sei se me espera, mas que me acalma, mas que faz do meu hoje eterna véspera, do amanhã nosso que talvez venha, ou que talvez a gente só desenha, e que em traços vai ficando tão bonito que a gente se acomoda. Deixa a distância não incomodar. Deixa guardado um cômodo na alma só com esses "talvezes". É quase minha despensa, só de possibilidades, improbabilidades, eventos sonháveis, que eu faço questão de deixar ventar nos meus dias, nas minhas dúvidas, soprando fé, sussurrando amor, destrancando essas janelas e portas que eu fechei em torno de mim. Onde me fiz nesse cárcere. Nele entorno sentimentos roubados e mal-inventados, que me remedeiam, dopam minha tristeza, anestesiam-me da vida. Não! A morfina que preciso é outra. Amor, finalmente. Quem sabe é o comprimido que falta? O resto de mim, comprimido em alguém que me dose, me saúde, ou me mate. Arremate meus sintomas. Faça-me ter crises de sorrisos como efeito colateral, que aí eu faço da felicidade minha doença crônica. Sem cura.

Quando nada faz sentido

Alastra, se estraga, desmancha e desmanda essa ilusão que só hoje eu vi que é armadilha. O ideal, utópico e irreal foi feito pra não existir. E eu não percebia. Sensatez forjada, pra que me vale? Maturidade inócua e improvável, abstrata. Destrata quem tanto a venera. Sincera, era o que eu pensava que fosses. Mas de tão minha, haveria mesmo de ser mentira e errada. E de tão real que parecia, me assustei. As fendas, que eu achei que eram dois degraus pra quando eu escorregasse, de repente se abriram. Vieram me derrubar. E acabaram por me salvar desse amargo que é enxergar o quão absurdo tenho sido. Eu achava que meu caminho era reto, certo, coeso. Irretocável. Mas era só essa minha máscara, que me fazia outro pros outros. E essas minhas lentes, que tornavam outros os outros pra enganar a mim. E como ilusão que me era, que me erra, que quimera, caí na armadilha. A matilha de verdades me mordia e eu enfim ia largando o sorrir pra entender como nem tudo são flores. Eu distorcia os sabores, e tudo aprendi a gostar. Fel era doce aroma, azedo era doce amora e amargo era você amar. Meu mundo era uma linda receita, eu só não sabia o que ele iria me receitar. Me postava lá, inocente, gentil. Achando que eu sendo eu mesmo era o único jeito de viver. Pra variar, precisei do despertador atrasado pra me despertar, pra me espantar, desencantar. Hoje, tudo o que é cores primeiro me mostra os cinzas, antes que eu os esqueça. Antes que apareça essa triste coisa de sentir mais do que sentimos, de se deixar levar por palavra e sorriso. Sorrir todo mundo sabe, elogiar a gente acaba que aprende. E a verdade tem vez que sobe na ponta emersa do iceberg pra se dizer fiel e amiga. Pena que a autêntica verdade se esconde no fundo. Guarda-se tanto pra que só se abra a quem a mereça. E se custa a surgir quem merece, ela segue casta, perece até se desfazer com o sonhador que um dia decidiu cativá-la, mas que logo se foi, viu que genuíno na vida era só mesmo se iludir. E que mais certo ainda seria a desilusão. Por um lado, ele estava certo. Por outro, estava também. E hoje espero a lua com fome, pra me dar uma fatia de sono, que ela esconde iludida quando começa a se encher. Lua, me dá hoje um bom sonho, dorme comigo e não some, mas não queira, não queira crescer.

Sonhos Baldios.

Encadernei algumas ideias, botei-as debaixo do braço e fui pra rua brincar de sonhar. Sai caminhando pelos quarteirões da vida e ancorei em uma rua distante. Nela encontrei morada e por lá releio minhas ideias. E permaneço a tentar libertá-las do papel. Algumas vivem alheias a mim, em escritas apagadas. Outras se personificaram e tomaram conta do eu, e hoje me constroem de forma a me moldar a todo instante. Sou agora construído por minhas construções que desconstroem o que me impede de evoluir. Assim, reinventando-me a todo instante aprendo que não é glória poder afirmar que jamais mudarei quem sou. Inverto a óptica. Sou quem mudarei. Desvios de rota nos abrem os olhos pra caminhos livres do peso do planejar. Afinal, estou brincando de sonhar.
Perdi a hora nesse desvio de rota que me trouxe até o presente e hoje o desvio é que me aponta a direção, mas, me permito ser guiada pelo incerto. Talvez o incerto seja o certo pra corrigir meu incorreto. Movida pelo que é sentido, busco menos tempo equacionando o que está cá dentro estacando e mais tempo permitindo só sentir. E nesse movimento de lutar contra o que está estacado aqui dentro, resolvi doar meu desacostume ao vento. Aprendi que sentir é acalento dos que não se guiam unicamente pela razão e veem razão em emoção. Agora busco o desacostume do sentir, fugir da rotina que generaliza e engessa as emoções. Estaca aqui. Esta cá. Estou cá seguindo. Seguindo sentindo o desvio de rota imperar caminhos que me modificam. Hoje, ao ver mudado meu reflexo nas frestas de espelho dos olhos alheios, percebo que brincar de sonhar me trouxe até a rua certa. E por elas sigo com as ideias encadernadas que se libertam a desencadernarem novos eus. Enquanto isso continuo a brincar de sonhar na rua distante dos medos, na esquina entre o fui e o serei, onde me permito diariamente amanhecer ideia, entardecer ação e anoitecer em sonho. Realizado ou idealizado, mesmo que não haja sucesso, houve tentativas. E nisso consiste meu sonho: sonhar. Sigo encadernando ideias, a me criar. Debaixo do braço, as ideias e a vontade formam o processo criativo do meu caminho. Fui pra rua brincar de sonhar. Fui pros sonhos brincar de viver. Fui pelo caminho brincar de sentir. Parei. Ancorei no sentir. Sigo sentindo, mudo seguindo, sinto mudando. Fui pra rua brincar de sonhar, volto pra casa antes do anoitecer.


Viver

Verbo intransitivo ou intransigente? Finito ou infinitivo? Presente ou mal passado ou futuro incerto de pretéritos? Primeira pessoa do singular ou pessoa de quinta num plural devaneio de ilusões? Se eu me mantivesse no subjuntivo, se eu permanecesse em dúvidas, se eu continuasse nesse limbo de incertezas, de desatitudes, de desfazeres, eu poderia estar largando esse gerúndio eterno de quase-ideias, quase-fatos, quase-sorrisos, quase-amores, quase-vida. A única completa é a lágrima, no seu modo indicativo. Aquela que é, vem, molha, escorre, rasga, corrói e seca. Porque não tem força pra ser imperatriz, pra ser imperativa. E quando o sentimento se faz sujeito oculto, verbo irregular, os olhos transbordam a presença impessoal do vazio. Quando o vazio impera, a realidade segue sem concordância com os sonhos e a regência some num descompasso que impede a fluência da fala. Cala. Refaz-se na mesóclise o esconderijo do sentimento, ali guardados como desinências o medo e a descrença, esperando um vocativo doce que o liberte. Que o ensine a verbalizar os sorrisos, antes que as lágrimas falem por si só. Antes que, nessa luta por um eu em voz ativa, minha gramática lance mão das exceções e me impeça também de ser a partícula apassivadora do desejo de nós. Já que na realidade, eu sou o sujeito, mas não tenho predicados. E quando durmo, retiro a transitividade do meu eu pra ser apenas sonho. Nos sonhos, eu já começo pelo tu vives. Porque o eu eu já não tenho certeza. E então ele vive, e pulo o nós, porque ele está atado tão forte que nem se solta nem me diz o que anda fazendo. Se é que ele ainda existe, ou um dia possa existir. Pode ser apenas o eu perdido contigo. De mãos dadas, atadas, amarradas em nós. Em nós. E no mais, vós podereis viver em paz, se o nós não lhe significar muito. Enquanto que eles sim, vivem, cantam. Sem nós. Só eles, que cantam e sentem. Pra eles, está tudo já escrito, já traçado: amem. Amém. E pra nós? Tenho medo de desfazer a metade e sobrar apenas um nó. Porque você ainda é a primeira pessoa do meu plural. E sem o nós, meu presente some. Vou viver entre o que era perfeito e o que podia ser mais-que-perfeito. Numa eterna imperfeição por ter-me corrigido da sua conjugação.

(com Ariane Harbekon)