Desaba(fa)r

Às vezes é bom ter alguém pra desabar. Desabafar.

Alguém pra eu desabar a desabafar que acabo de desabar por alguém. Alguém pra falar aquilo que eu nem sabia que dava pra sair em palavras. Alguém pra eu desistir de falar aquilo que não vai sair em palavra alguma, de jeito nenhum. Alguém pra me falar palavras sem motivos, palavras sem sorrisos. Alguém pra me trazer palavras em sorrisos, sorrisos em palavras quaisquer. Quaisquer que sejam as palavras, quaisquer que sejam os sorrisos. Alguém pra chorar por você. Alguém pra só orar por você. Alguém pra te alegrar, alguém pra se negar a desalegrar você. Alguém pra desabar de tanto rir com você. De você. Pra você. Alguém pra estar lá ou para não estar mas pensar em estar. Alguém para pensar em mim, pensar em mim mesmo quando eu mesmo(a) esquecer. Alguém pra não se esquecer de que hoje eu posso estar desabando minha tristeza, desabafando meu fracasso em algum lugar. Alguém para desatar esse eterno sucesso em nunca acertar. Alguém para me desatar as fraquezas e me fazer pensar que posso ser melhor. Um alguém que seja você, alguém pra me fazer crer que a vida pode valer. Você, pra me confessar que eu sou o lugar que você quer ir se confessar todos os dias. Você, pra me chamar, sem descaso, de casa. Eu posso ser um peixe, que minha casa não será a água, um pássaro, que minha casa não será no ar. Posso ser eu mesma, que minha casa não é para onde vou todo dia dormir... Dizem que casa é onde descansamos, onde nosso coração está, pra mim esse lugar não é físico é mental, ele é você, eu estou em você.

(com Isadora Fachardo e Safire Bicalho)

Degradê

É um querer eterno em entender. O interno e o externo que são diferentes, que se escondem, se mascaram, se escancaram, que é meio inferno. Que é meio céu. Meio céu no por do sol, que não sei a cor que nele vejo. Parece azul amarelado meio vermelho ou rosa. E mergulhar no mundo é meio isso mesmo. É meio duvidar de ter dúvidas, acreditar em ser tão cético, descrer em desvidas onde não há nosso caos. Caos: nossas ocas em pedacinhos misturados. Nossas casas. Nossos dias. Intrínsecos. Vivíveis. Convivíveis. Cotidianos.

Mas bem que podia ser um cais. Teria lá um barquinho amarrado descansando. E outro se equilibrando na linha do horizonte. Meio aqui, meio lá. Meio a velejar, meio a dissolver no mar. Meio cá, meio ali. Meio a sumir de vista porque o caos faz mais barulho e barulho é efeito sonoro de vida. É defeito sonoro dos impossíveis calados que sonham sem precisar dormir. Que sorriem sonhando, que sentem que sonham sorrindo e chorando, que sofrem porque sonham e não sorriem, que somem quando choram e não sonham, que sonham quando cansam de chorar. E acordam pra vida sem se lembrar do que choraram de noite. Aí sorriem quando podem e também quando pedem. Aí também choram. Quando podem e também quando impedem. Aí sonham quando sonham com o barquinho quase caindo pro além do horizonte. Como se ali fosse uma cachoeira, uma fronteira, uma laranjeira sob a qual tudo é sombra. Engraçado. Sempre parece que há um fim. Mas não. Tudo vai eternamente em voltas. É esse mundo que em volta da gente tem cara de mau, mas que só quer sorrir junto com a gente. Quer que a gente vá no barquinho até dar pra ver que não tem nada a ver. Ver que tudo está num só, nesse trem que a gente chama de vida.

Eu, lírico

E que vida é essa que vivo e me leio e me livro d’escrever como é você? Que alma é essa de que sinto tanto muita falta falar contigo? Que dia é esse que só se adia do hoje e invadia meus ontens perdido no amanhã de sempre? Que sonho é esse que não sabe mais me sonhar e que some de vista e a vista sem prazo pra voltar a parcelar meu real e onírico? Que silêncio é esse que vem barulhar-me instigando melodiosos sussurros abafados? 

É porque tem dia que o dia acorda parcialmente nublado e a gente acaba por se nublar também. Aí a alma aproveita a rima e decide dublar nosso sentimento. Então lirifica desabafos e torna tudo melancolia em versos alexandrinos, tentando dar-lhe valor que não há. E tudo faz sentido por alguns minutos. Até que a epifania que todo mundo guarda no bolso de algum casaco perdido no guarda-roupa resolve aparecer. E eis que começa a filtrar o que realmente faz sentido. E tudo é água. Tudo se esvai, se vai, cai. Perde o sentido querer achar sentido na vida. Esse dissabor quase metafísico de deixar se desentender de tudo dá uma dor funda. O vento esquenta, o sol não sai e a lua míngua, míngua, míngua. E o sono vem cedo, antes de ser hora de querer sonhar. E os sonhos assim nos abandonam e deixam o sono nos dormir a noite inteira. Num mero stand-by do mundo mesmo ele de sempre. Até que a gente tropece em alegrias amanhã de manhã na rua e se esqueça de tudo isso. E tudo desfaça de fazer sentido e volte à vida ávida dádiva vívida dúvida de todo dia, que os sonhos virão disfarçados de realidade, e vice-versa, quando seu olhar de novo te sorrir sem você nem lembrar.

Isso é um continue.

Isso é um continue. Um prossiga. Prossiga com o que sente aí... e continuo sem saber por onde continuar. Continuo sem continuidade. Vaidade.
Nem sempre seguir sem rumo é sinônimo de liberdade. Quando me falta o rumo, me sobram incertezas, as quais me subtraem a leveza nessa divisão entre o sim e o não. E aí, acabo ficando pelo caminho. Fico pelo que não completei, vagando pelas hipóteses deixadas. Rumando sem rumo fui obrigada a fazer escolhas. E escolha é exclusão. Gostaria de ter feito acolhas, e acolher a todos os atalhos desse caminho sem rumo. Mas não pude, fiquei com os retalhos. No atalho até aqui retalhei todo o resto e segui com os pedaços. Mas segui, afinal, isso é um continue. E continuo com o que vou escolhendo, independente do que esperam que escolha.  O que te parece bom, a mim não o é. E já que escolher é excluir, excluo o que não se parece com opção, e sim imposição. O que se impõe me opõe. Continuo por opção, já que as escolhas se impõem de qualquer maneira. De novo escolhendo; escolhendo a que devo continuar.  Alguém de mim ficará de fora – para esse alguém minha continuidade será interrupção. Mas vale, pois o que seria continuar se não interromper? Interromper o que te impede de seguir adiante. Ou seguir de volta, que seja. Reencontrar é também avanço. Por isso, busco reencontrar a parte a partir da qual deva continuar. Queria poder levar todas as partes como um todo em mim, mas algumas delas me prendem e impedem o movimento. Talvez eu queira me prender a elas, mas não deva, afinal, isso é um continue, um prossiga. E nesse retrocesso busco o avanço entre o que deixo e o que levo; entre o que prende e o que motiva o movimento, entre o que levo e o que deixo. Sim, você. Você está nas duas pontas: no começo e no fim. A continuidade e o retrocesso, motivando minha ida e minha volta.  E nessas idas e vindas sem volta nem rumo continuo remando, rumando por não sei onde pra chegar a não sei qual lugar. Só sei que você deve estar lá me esperando, afinal, isso é um continue e nele você é quem motiva o movimento. Então prossigo, com um pouco do que levei de você e te deixo a continuar com o que deixei de mim. Em caminhos opostos ou opostos cruzados, continuemos.  Continuo sem saber por onde continuar, mas continuarei até encontrar. E se no fim desses atalhos você não estiver lá, entenderei, au revoir!

Alegoria [#poesia]

Tão logo deixei de vagar
Duvidei desse nada doce destino
Deste hino de plural felicidade
Deste mural de constantes desatinos
Ora, se agora se contam momentos
Deixaste, ó vida, de sê-la!
Selarão meu caixão com minhas trinta mil felicidades
E registrarão todas em cartório
Venderão o cento delas, como os brigadeiros
E há de haver promoção no dia de finados.

Dona

No esconde-esconde com a felicidade eu sempre perco a conta das vezes que ela nem conta e vem me achar antes que eu já tenha me escondido. Vem, felicidade, meu esconderijo eu desfaço fácil. Difícil é te procurar na caixinha de músicas e não te ver dançando. Exala seu sim a mim e exila esse sol do meio-dia. Que a vida quer andar, girar. Virar desamores perfeitos roteiros de ficção amadora insensata ilusão. Nada: a nata dos impensamentos meus, quando a minha metafísica é estudar a felicidade clássica. Aula prática. E as intempéries das minhas dúvidas questionam quem sou, provocam e não chegam a conclusão alguma. Mas alguma coisa boa deve haver em tudo isso. Sabes tu disso. Quando sorri, sorrimos. Quando chora, consolo. Quando eu sumo, você acha um atalho e me acha os retalhos e me junta em você. Sem nem merecer, eu poderia rimar. Mas pra você eu sempre mereço. Por você eu tento parecer que tudo merece um pouquinho de ti. E acredito nisso há tanto tempo que não tem como não ser, como des-ser, como descer desse abraço. Só sobra crescer nesse amor, prover esse desembaraço de tristezas com outro abraço seu. Provar pela milésima vez que tem um coração do tamanho do nosso, e do tamanho do mundo, que cabe o meu também. Cabem orações vidas três inteiras filhos que amam você. Podia ser sobre felicidade, ou sobre a mamãe. Mas o manto de tudo-que-há-de-bom é o mesmo, e sob esse carinho todo sei que são mesmo a mesma coisa.

A Você.

Meu interno exterior. Meu externo intrínseco. Minha composição, formação, canção, lição. Vinte e três do eu quarenta e seis. Um tudo tão essencial e ao mesmo tempo tão singelo, tão frágil. O complexo que se desfaz ao ver os primeiros passos, as primeiras palavras, as primeiras lições da escola, e assim trata a todos os acontecimentos como “os primeiros”: únicos e especiais. Que haja repetição, que venham os caçulas-  será tudo sempre como o primeiro, a estreia. O choro do nascer ao casar.
A esse dom de individualizar entrego meu coletivo, minha coletânea. À coleção de eus que já possui, e mesmo os que ainda estão por vir têm repouso em suas prateleiras. Posso buscar novos volumes com novas canções, belas capas, mas, sem seu acomodo não tenho por onde me organizar, me guardar, me apoiar. A essas prateleiras que sabem a ordem necessária para cada momento de minha coleção, revelo meus volumes.  A você, que aceitou dedicar incontáveis dias de sua existência para existir a minha. A você, que é a referência inabalável de cuidado e proteção em todos os momentos. A quem se esquecia da coreografia para assistir aos dois pedacinhos que dançavam com seus olhos. A quem acreditou muitas vezes no impossível para possibilitar minha cura. A quem sonhou comigo, e a quem hoje realiza saudade. A quem hoje me é referência do que faz falta. A tudo isso, qualquer coisa se torna pequena. Mas a isso, deixo em gratidão tudo o que é meu – tudo o que você me deu. A você que é casa, porto, paz. Ao que amo. Chamo. Ao que é amar. Contemplar. Ao que transmite sabedoria. Calmaria. Ao que repreende. Aprende. A quem caminha comigo nessa jornada. Obrigada. Ao seu dia. A você: Mãe.

Missão

Apreendi-me em ti. Aprendi a mentir. A prender-te em vista minha, investi na desmemória e caí numa retórica revoltada, revirante, reciclada. Uma encíclica de inverdades outrora autênticas. Agora jaz faísca abrasada de sentimentos. Isca desabraçada, em ruínas de rapinas de adormecidas adrenalinas. Hoje vãs. Vândalos dos acasos e descasos da minha ex-vida. Porque em vida as fagulhas são vaga-lumes, num paraquedas que não ia abrir, e não abriu. No chão, somem. Subtraem do fogo estrelas cadentes em chama. Traem a fé no infinito. E se multiplica em vazios a escuridão, que nos cura os olhos. Escuros olhos, claros olhos, caros olhos. Repara olhares em vírgulas, pisca a cada frase e morre em cada ponto. E esse manto tem só letras. Sem sinais. E mais, falta-me o orvalho. Ou que o valha. Que aspirja seu suor sobre os pirilampos e os abençoe. Sofreram minha ira e viraram pó. Só. E eu inda vivo, na berlinda aqui. Um tanto quanto pranto meu, diria. Acalanto fino do destino, orgulhoso do dever cumprido. Do espanto comprido, no entanto, contido. Fiel vigia de todo momento. De todo futuro isento de chance. O além além do alcance. Frustro-me, e custo a me perdoar. A ter do ar pena e inveja. Veja, lá se voa e se venta. Aqui se senta, e mal se vê. Fere. Fura a pura sensação de nada. De estrelas letradas em epopeia na noite. Em baladas por alguém. Enquanto ninguéns sobram cá. Cabe-nos nessa esquina azul? É, só tu. Soturna. Noturna. Eu não, durmo. Urgem sonos. Ponho sonhos na lista. Em dádivas esperadas que me são o não-você. É fogo.

Metade aqui, Metade lá.

Essa partida abalou minha vinda. Talvez se o peso das primaveras não fosse tal como é, teria transformado a partida em reencontro. Difícil é decidir à qual das partes devo me reencontrar. Metade aqui, metade lá. E nada por completo, tudo por se completar, contemplar. Contemplar a metade distante.
Me vejo feita em duas, sem possibilidade de união. Meu novo caminho parece ter sido traçado sobre um paradoxo.  E nessa viagem de divisões estou me equilibrando entre os reencontros que partem. Dividem-se. Dividem-me. Duvidamos.  Me afasto do que me escolheu pra seguir o que foi escolhido por mim. Mas volto. Meu escolhido pede a volta. Reaproximo-me do que me escolheu para senti-lo como o que me acolheu.  E que a melhor escolha me acolha. O escolhido, acolhido; o que escolheu, acolheu. Todos são escolhas, folhas. Nelas escreverei, e me permito a licença poética para seguir em dois capítulos: o que ficou e o que virá. E um deles, me acolherá. 

Passatempo

Eu recordo. Eu recreio. Nos intervalos da minha consciência, pelo fino das frestas entre as festas quietas da minha vida. Só não sentia. As fendas eram só frestas no chão, não existia o profundo. Agora dá pra ver direitinho, por baixo. Alpinismo de pensamentos, de existência. Uma parede que machuca mas que te faz flutuar. Ou então cai e fica. FICA! E fixa. E pizza. E pisca. E fisga. E larga. E amarga. E a carga que pesa continua, apesar. Tudo nas costas. Sem encostas. Sem crostas. Só alma. Só lama. Só mal. Bem, que passe. Não pulse. Mais. Fantasiam que não há azia nisso. Pena. Tempo não é tudo, coitados. Talvez ele se chamasse tortura, mas acharam que não era muito sonoro, poderia prejudicar as vendas. Aí veio “tempo”! E a gente sempre aposta nele. Mas esquece disso depois. O maldito já levou nossa memória e ainda ganha os créditos por isso. Pra mim, covarde. Apaga minhas tardes em vez de fazer a vida deixar de arder... 

Hoje já vendem isso em doses, engradados e barris. Só fingem que é outra coisa.