Um silêncio de graça.

Eles se aguentam infinitos, só se olhando. Mais que dizer, querem se decifrar. Descobrir alguma certeza onde sempre parece que não há. Tem vez que é silêncio, tem vez que é revolta, tem vez que é tristeza, tem vez que é descaso, tem vez que é sorriso, tem vez que é risada, tem vez que não é nada mesmo, tem vez que é tanta coisa junta! Um meio que desafia o outro. Perdem o sentido, perdem as palavras. Se encaram na ausência do que mais insinuar. A procura inútil por mais “quases”. Se esperam no fim das palavras que agora se repetem e cansam e cansam e voltam e cansam e dormem.

Continua o desafio. Geralmente ela sorri primeiro. Ficam se enfrentando, se esperando, se abraçando de longe, se conversando calados, se cutucando, se procurando espaços, se segurando de medo de o outro pensar noutra coisa. Engraçado, não fosse essa agonia da ignorância. Tem hora que eles se desejam que estivesse escrito na testa. Sentimentos e ressentimentos. E que ficasse tudo claro. Mas é que eles não sabem se escrever direito. Tudo metáfora, tudo implícito, tudo rabiscos e laços amarrados e traços largados e pedaços rasgados e meios abraços meio que só abraços ou meio que são pedaços faltando de um lado e de outro talvez. Não se agarram, não se amargam, não se são num só. Se preferem ali nos desafios, nos destratos, nos atritos. Nos atrai a distância. Nascida pra ser distância, nascidos pra serem distantes, destoantes, divergentes, diferentes, de repente beijo. Foi-se na demora das palavras lacradas. Choveram as letras certas, embaçou tudo. Sorriram juntos, meio que perderam juntos. Leram no outro sorriso o mesmo livro que sofriam pra escrever.

São assim, momentos. Segundos. Reviravoltas. Não pausados, mas um atrás do outro, simultâneos e sem ligações. Tudo ou nada, sem meio termo, sem copos meio cheios e meio vazios ou meios sentimentos. Permeiam em explosões e doçuras, e nada nunca está bom, sempre há falta. Ou sobra. Tudo ali tem importância e ela, que sempre sorri, fica séria. Se fala, se arrepende. Se cala. Se pergunta se há outro jeito. Você que sente sabe, não adianta, há sempre outros argumentos, há sempre mil hipóteses, nunca certezas. Nunca exclamações. Se exclama mesmo só a vontade, de resto a explosão vem sempre acompanhada da interrogação. E assim se interrogam todos os dias. Aquele beijo? Ele aconteceu ou foi só um devaneio conjunto implícito entre esses olhares intermináveis e indecifráveis deles?

Aconteceu. Não aconteceu. Acontece é que ele não cabe na história. Não cabe em tanto silêncio seu louco silêncio sufoco agora saudade que começou. É silêncio de longe. E de longe, até as palavras são silenciosas. Tudo é quase, sem força de nada. Só se diz pelas beiradas, mastigando o silêncio quando ele incomoda. Mas tudo bem, ela sorriu primeiro.


- com Isadora Fachardo

O homem que nunca tinha visto o primeiro raio de sol.

Aquele homem já não via sentido em dormir, em sonhar ou acordar depois. Deixou que a felicidade fosse embora e agora se via arrependido, num sentimento terrível. Assim que viu da praia um barquinho em alto-mar, e a claridade que prenunciava a aurora, lembrou quando era pequenino e amanhecia na praia com o pai, que o trazia para ver os pescadores retornando ao raiar dos primeiros lampejos do sol. Nessa época, o que mais intrigava o menino é que ele nunca conseguia ver surgir o primeiro raio de sol. Na maioria das vezes, ele se virava para o pai para perguntar quando ia nascer o sol, e nesse intervalo o astro-rei já tinha aparecido, sem que o menino o notasse chegando. Depois de anos tentando, em vão, acompanhar o amanhecer, ele desistiu um dia. Naquele mesmo dia seu pai o deixou e partiu para o céu.

Mas o infinito que o homem via agora através do barco velejando no mar trouxe-lhe também ideias perigosas. Tinha perdido o gosto por viver, pensava em largar o futuro e partir dali; quem sabe a morte lhe fosse mais gentil. A esposa falecera na madrugada passada; filhos não teve. Tudo o que sonhara um dia menino, sob as amendoeiras da beira-mar, num dia já não existia mais. Ele achava que a vida era como a areia molhada pela água do mar: desenhava e escrevia o que quisesse. Mas viu que quanto mais longe da água do mar, mas morta é a areia, mais difícil é mudá-la, modelá-la. Viu que essa vida, essa areia, acabava escorrendo pelos pés ou pelas mãos. A mesma areia que preenchia a praia enchia também a ampulheta, controlava o tempo, e só uma mudança brusca mudava o rumo das coisas.

Faltava mesmo algo diferente que lhe devolvesse o sorriso, que retivesse as lágrimas do passado. Veio então o ventinho da quase manhã, soprando do mar para ao litoral, e ele ergueu a cabeça. Os fios grisalhos tremularam, em pé ficaram. Queria o homem fosse um sinal divino a brisa repentina... Mas naquele momento sentiu também a areia que irritava os olhos, grãos minúsculos que logo cerraram suas pálpebras. A raiva trazida com aquele súbito incômodo fez o homem levantar, desiludido, desacreditado. Não chutava a areia da praia porque novas névoas arenosas podiam encobrir-lhe os olhos, de novo.

A ideia de reescrever seu caminho deu lugar ao pensamento mais cruel. Estava certo de que era hora de tirar a própria vida. Trêmulo, ele correu ao cais a procura de uma corda que fizesse papel de carrasco. Trouxe um reforçado pedaço que arranjara com um pescador. Escolheu a amendoeira sob a qual tanto refletiu na infância para terminar a tragédia. Enquanto preparava a forca, não pôde mais reter a água que escorria no rosto. Chorava de medo, de angústia, não tinha convicção nenhuma de fazer o que faria em breve.

Sob o nervosismo do fim, sob a árvore do fim, sob a corda do fim, ele abaixou e apanhou um punhado de areia. Então se dispôs a pensar em tudo que de bom vivera naquela triste caminhada, antes que toda a areia escapasse por entre os dedos. Caso conseguisse que naquele curto tempo houvesse espaço para reviver toda boa lembrança da vida, podia ter certeza de que não valia esperar o futuro. Mas se a ampulheta da sua mão fosse ligeira o bastante para sucumbir às recordações...

Vieram família, esposa, escola, trabalho, dinheiro, casa, carro, festas, amigos, namoradas, mas isso vinha e ia antes que metade da areia tivesse retornado ao chão.Veio Deus, vieram viagens inesquecíveis, vieram sorrisos, vieram risadas, vieram presentes... Mas consigo traziam lágrimas e indecisões, sua fé faltava e a areia descia lentamente, descia lenta, lentamente. 

E quando esvaziou a memória, quando já não havia do que de bom se lembrar, não sobrou dúvida ao homem de que sua vida fora em vão. Apesar de tudo e por causa disso tudo, ele literalmente morria na praia. E então enfiou-se pela corda e deu uma última olhada para o horizonte antes de saltar para fora da vida. Nesse instante, ele viu pela primeira vez o surgir veloz do primeiro raio da manhã, que vinha ao encontro dos seus olhos trazendo a felicidade que ele perdera. 

Lembrou-se, é claro, do sonho infantil que quase se realizou tarde demais. Lembrou-se de novo do pai e chorou muito. Fechou os olhos e enxergou um garotinho e seu pai, na madrugada, sentados na areia da praia. Foi quando entendeu quantas lembranças ele ainda guardava, quantos sonhos ele ainda tinha, e quanto amor à vida ainda lhe pertencia. 

Largou logo a corda que incomodava o pescoço, jogou-a longe, no mar. Pulou algumas ondas, queria mesmo era chegar até o barquinho que ondulava mais além. O infinito piscou para ele, e aquele homem voltou à vida.

Coração preguiçoso

Jeito bobo de tentar ser. De bobo querer gostar, querer ser gostado, te viver bem juntinho, sorrir sempre dois, chorar qualquer lágrima sua pra não te encharcar os olhos. E nisso, cabeça para, renuncia, reflete, aflita. Tem hora que a gente sonha com a vida, vida vai e des-sonha. Faz rezar pelos melhores acasos, os melhores silêncios, os melhores encontros desencontros pedaços de minutos juntos em olhares-carinhos. Recusar o racionamento de coração. O poupar sentimento, o economizar angústia. Angústia, angústia, aquela alergia por dentro, lugar-nenhum e todo-canto - incomoda, engasga, puxa, tosse, amarra, segura, sufoca! Mas se sua, refresca, que o depois contigo é recompensa. Torna difícil me dosar os goles de felicidade, a água da torneira dos sorrisos custou a chegar. Veio gotejando, fez-se constante, tornou a soluçar. Mas quando parece que é fim, quando parece que é vão, vêm gotas verdes, não sei se castanhas, suspirar sua persuasão fácil sobre esperança. E inquieta assim minha agonia ateia, meu mero vazio da sua certeza – mas passou. Ela proscreve ante você aqui, prescreve você antes e depois e agora e aqui, você que me aquieta, desagonia. Suspira, pois, e flutua leve, leve, leve, leva daqui o que não és e tudo o que não sou. O resto todo é longe. E, distância, agora, já não te quero nenhuma.

Tons pastel.

Fechou o caderno e pressionou-o contra o peito como se quisesse fazer penetrar o que lá estava escrito. De fato, talvez quisesse mesmo. E enquanto alimentava essa vontade, tinha a impressão de poder ouvir as vozes das eternas melhores amigas de que hoje não tem mais notícias. Parecia ser eterno, mas, como todos sempre alertaram com pesar, não foi.

Agora, todo aquele presente tão feito a tons pastel e babado mora na saudade e no caderno, esse que segura tão forte contra o peito como se pudesse absorver tudo o que ali registrou.
Histórias com cores bonitas, mesmo que escritas com mãos sujas de quem acabou de construir castelos. Problemas tão frágeis, que deixavam a foto com cara feia, matemática que era tão adorada quando ainda recém-descoberta. A mudança de letra a cada grupo de páginas, e o desaparecer dos resquícios de castelo, tornando as páginas mais limpas com o passar dos anos. E mais sem cores também, preenchidas por essa palidez de que o tempo nos mancha.

Cada página, um reino, naquele tempo em que podia ser astronauta, escritora, bailarina ou qualquer outra profissão que lhe causasse fascínio, a cada intervalo da escola; quando a academia não lhe engessava, e ultrapassar mesmo os limites do desenho com o lápis era bonito.  Nas manchas de areia, revê também os sabores, os cheiros e as cenas que hoje parecem ser exibidas em sépia, deixando tudo mais bonito e cheio de saudade.

Os heróis que se foram, as profissões que não pode escolher, os amigos que podia jurar: eram pra sempre, eram irmãos. Ficou tudo pra trás. E não há remédio que traz de volta, que cure o que o tempo matou.
Sempre revisita o caderno, de onde faz das lembranças um lugar seguro, imune ao que os anos ameaçam esquecer, afinal, apagar a origem faz a história rumar sem rumo. Quando se perde de si, volta às páginas sujas de quem realmente é pra que possa prosseguir em coerência com a astronauta, a bailarina e toda a multiplicidade de sonhos unificados no envelhecer.

Unificaram-se os sonhos e também todos os múltiplos que podia ser. Crescer faz isso com a gente, dizendo que somos sempre os mesmos, únicos, moldados e permanentes. É mentira. Precisamos ser diferentes a cada intervalo de tempo, ser sempre novos de acordo com o filme que passa aqui dentro: múltiplos. Engraçado é ver dizerem que crescer faz aprender. Desaprendemo-nos a cada ano novo, unificamos tudo o que precisava ser diferente, só pra manter o mesmo eu embalado. E dessa embalagem fazemos conteúdo vazio, e seguimos imersos em superfície sem alimentar a liberdade de mãos sujas.  

É com o caderno que colore seus dias cinza, e quando se sente vazia preenche o peito de tons pastel da infância e de tudo o que lhe lembra a enxergar com o coração e a parar de calcular feito gente grande. Uma capa, 100 folhas, 200 páginas, milhares de caracteres, parágrafos, vírgulas, castelos, profissões e sonhos. Nada disso importa quando quantificado, mas tudo isso qualifica quem foi e o que será depois.

Um ar bonito definitivo: é o que sente ao inspirar o cheiro das folhas antigas do caderno. Um ar bonito definitivo. É o cheiro das folhas e dos dias infantis, que perfumam a rotina cinza em letras e memória, quando se encontram o caderno e o peito unidos por mãos agora sem areia e cheias de saudade. 

Artesanal

Como um amor artesanal, eu moldava cada sorriso para que lhe fosse, ao menos, palatável e te fizesse sorrir também. E a cada vez que sorria, eu rezava pra não parar nunca mais.

E eu coloria com elogios disfarçados os vales do silêncio entre as coisas bonitas que a gente se dizia. Escrevia conversas breves só pra não te deixar sumir. Pra mim, era proteger a felicidade, abraçá-la e não largar mais. Todo dia dava pra ver seus sorrisos por escrito, por silêncio, por lembrança, por vontade, por favor.

Um dia para o outro, e era bom você estar por perto. E aos poucos vai dando gosto te escolher nessas palavras, te conversar nesses meios pedaços de poesias. Elas parecem que se divertem estando juntas. Uma convida a outra para dançar, e juntas vão me fazendo bem - como me fazes. Feitas à mão, iguais aos projetos de sorriso que te faço pra cativar alguns minutos. E enquanto funciona, vai ficando guardada aqui, cada retrato doce da sua doce presença.

Só que sábia atriz é minha memória. Atua beleza que hoje recordo sem saber se há. Se bem que te sinto – e isso, no fundo, no fundo, não dá pra ser mentira.

Você me conhece

Satisfaz-me o buquê de outros sorrisos: menos vistosos e menos profundos. Menos engraçados, menos imprecisos. Menos tortos, menos... seus. Mas que sorriem meus olhos numa distração que convence. Ou que quase convence. Melhor que padecer, no aguardo de acasos.De encontros atrasos, quando a gente se cruza e o momento faz rir. Deixei de falar, ousei ser silêncio, não adiantou.

Então, diferente. Quieto? Divergente. Longe? Dissidente. É tão estridente o som que me faz, seu rosto mudo que sussurra em mim. Grita, berra aqui dentro! No salão grande de espelhos e ecos. Espaços cobertos; são cacos de mim. Pisando descalço, na brasa de tudo. Ciente do sangue, não isento de dor. Pedaços de letras, bem mal costuradas. Estátuas de vida, paradas, perdidas. Expostas, largadas, postadas, vendidas. Falam pra dentro, se escondem. O bonito se me torna o nada. Qualquer palavra é vulgar. Fugaz.

Qualquer ação é desculpa, é motivo para culpa. Quem você vai ser hoje? Qual sorriso me abrirá? Essa indecisão é meu mártir. E fico aqui, a me calar, a me culpar, a me forçar a fingir por entendedor. Aqui, te olhando a dois passos de distância, já é longe e de longe eu nunca sei de você. Você é assim: olhos, bocas e corpo todos são atores, e atuam conforme você quer. Será que já foi suficiente esse silêncio? Quero que você me deixe ir mais perto. Quero que você me deixe saber de você. Quero você. Quero te ver por coração, sem interpretação.

Você assim distante não me satisfaz. Me pergunto se um dia vou me satisfazer de você. Esses sentimentos espalhados que brigam por mais espaço não me deixam chegar a uma conclusão. Fico aqui: achando um dia que me quer e no outro que me é indiferente. Fico aqui me torturando a cada palavra sua. A cada ação sua. Me entregando a cada sorriso seu, seja ele qual for. A cada toque seu. A cada olhar seu. Fico aqui sendo cada vez mais seu.

Mas se um dia ao acaso nos encontrarmos perdidos no mesmo sorriso quero te pedir que não o desfaça, mas apenas me olhe e prenda seu olhar no meu e quem sabe nele você decida me contar seu segredo. Quem sabe nele vamos nos entender. Quem sabe nele fugimos juntos para sermos, cada um, metade satisfação e metade coração.

(com Isadora Fachardo)

Preciso saber me ver.

Essa vida anda mesmo tão sem vida que mesmo a chance relaxar, se fez hoje tortura pra mim. Corri as horas em busca das palavras certas capazes de libertar o que estava trancafiado aqui, essa vontade de parar sem parar. Não degusto mais os dias, apenas engulo a pressa que tenho pelo dia seguinte. Pra quê? Pra reclamar de saudade depois, pra dizer que dói não ter mais o que poderia ter vivido melhor. Pra dizer que se tivesse outra chance, teria sentido, em liberdade, o surgir de palavras espontâneas capazes de traduzirem meu eu, e não olhar pra esse passar de páginas em busca da rima certa. Mentira. Faria tudo de novo em vazio, preenchido por sopros de prazer pelo sabor do engolir de dias.
Me sinto comendo pipoca no parque: Salgando e doendo cortes até então desconhecidos, que a gente só descobre quando dói o cantinho da boca. É agradável, mas os pequenos incômodos por pouco ultrapassam o prazer do sabor.
De que vale? Deixei roubarem os prazeres, as pausas. Não me permito mais ouvir o que o silêncio sabiamente diz, e fico com a surdez desse barulho de vida. A ida, a saída, o nascer e a despedida. Todos fundidos por esse não permitir que, pela embalagem, diriam que é o viver da liberdade de seguir adiante. Se emoldurar pra caber num quadro, esse é o sabor insípido que essa pseudo-liberdade nos proporciona.
A vida está engaiolando pássaros sem asa. Não basta não poder sair dos arredores, é preciso impedir que mesmo os caminhos baixos sejam explorados, e que todos esses sopros de coragem sejam pela pressa de tentar escapar. Essa vida está é mesmo muito morta, e a rotina que nos engaiola, cada vez mais pulsante e oxigenando nossa falta de novo ar.
Monocromia desse emoldurar-se, são essas as cores que pintam o tic tac dos anos. Engolindo dias vazios que poderiam estar repletos de sabores, de cores. Sempre buscando as palavras supostas capazes de traduzir essa conversa muda. Não há parar. É sempre seguir sem mesmo saber pra onde se vai. E se vai. Indo ou ficando, ainda existe o grito do continue, avance, alcance, evolua, aprenda, inove, surpreenda. Tudo vazio, tudo abstrato. Alcançar o que? Evoluir pra onde se desaprendemos mesmo a sentir. Tem-se corpo, não combustível, mover-se como?
Esse trajeto é de certo incerto. É provável que existam muitos passos entre a dor que sinto e o sabor que o final do caminho prova. O que acontece durante o caminho? Não consigo ver. A luz cega quando me ilumina: fecho meus olhos sob quando ao foco desses holofotes que gritam as rimas erradas, as vírgulas mal colocadas, quando impera meus erros à luz. Existe pra onde possa correr? Correr escorrendo os erros de uma história permeada por goteiras que mancham palavras, mudando a forma como deveria pontuar a linha. Era minha. Não é mais. Foi tomada por gotas d’ása que me voaram daqui.  A luz? Deveria me guiar morada, apesar do meu certo e do eu errada, mas somos nós. Atados, alados de medo da luz. Gotejando em palavras, tentamos pontuar novos parágrafos e contar os passos. Os traços de linhas, os laços de nós, a rima então minha, os rastos de pó.
Essa vida anda mesmo tão sem vida que viver a calma é agonia, permitir-se a pausa é apatia. Estamos embriagados de sobriedade – e de drama também, no meu caso, permitam-me o perdão. Mas o caso é que o caso é legítimo. Sobriedade demais que nos embaça a visão, tira o equilíbrio e nos empurra pra corda bamba. Seguir sempre, avançar, sem saber por onde nem como, e encontrar sorrisos por fazer isso. Não, não. Essa vida anda mesmo sem vida, e se ela assim prosseguir, viver será morrer seus dias. Vale? Não. Reanimá-la é a tarefa. Revivê-la. Pode até estar mesmo sem vida, mas emprestarei meu crédito e depois cobro juros em saldo de dias.



Deixo assim ficar subentendido

Saudade das palavras-lâminas, que hoje já estão cegas. Umas belas ainda resistem, outras delas logo perecem. Carecem de vida ou beijos que as ame. Que as ame ouvir: sopro ou grito. Ou sussurro de frases decoladas no ar. Tem hora que dá pra guardá-las numa caixinha e dar-te em tuas mãos. Tem hora que você não estende as mãos pra guardar a caixinha. Mas, enfim, as palavras, elas fogem, cansam do silêncio e ousam falar. Dizem o que não sabem dizer, furtam sentimentos, mordem quem sente saudade, choram quem se finge feliz e amam quem desiste de amar.

Sílaba em sílaba, o tudo junto junta as partes do que há aqui dentro, que a gente só sente e não sabe o que diz. Meio que os resmungos da angústia que a gente não acha em canto nenhum. É formigamento na alma. Tá lá, incomoda muito e não dá pra alcançar. Só o passar do tempo faz passar. Vira e mexe a gente tem isso. Não dá pra gritar, porque as vozes que doem também são surdas. Irônica e absurdamente surdas. A gente aprende a esconder por dentro, a largar os projetos de palavras nas estantes quebradas onde já se equilibram as sensações. Aí se pesa para um lado, sente-se mais, e a boca derrama versos do que às vezes só é poesia pra gente. E quando se sente menos, ou demais a ponto de doer, preferem-se as palavras magras, estreitas, breves e vazias. O silêncio montado que a gente forja. Mas que é, no fundo, no fundo, só o nosso jeito de falar mais e mais aos ouvidos que nos fingem não ouvir.

Você. Coração, coração, coração. É longe demais daqui onde eu penso e te preciso. É uma superlotação de tanta coisa! Coisa que a gente vive e anota pra não esquecer detalhes de cada sensação. São como cheiros e sons e vultos, um pouco mais implícitos, talvez. Há olhares por acaso, esbarrados sem querer, sorrisos seus de graça, gentilezas espontâneas – que dá pra te ver alegre do outro lado. Do lado longe onde se instalou seu pedaço de mim. Agora, trancado sob suas letras, vou te trancando também. Travando, atravancando, atravessando, entrecortando, entrelaçando, agradecendo. Qualquer coisa, ainda está guardada aqui.

Te ver

Não chove aqui. Não água aqui. Não mágoa aqui. Não magoa aqui! Destoa de tudo os dias que vêm. Os dias em que você vem. Vêm sorrindo, que só sorris. Vem cantando, que só encantas. Vem só sendo, sendo só o que me inspira. Tem vez que foge, que some, que cala, que fecha, que cora, que chora, que raiva, que vida, que faça - do seu jeito os dias continuarem a serem. A serem assim. Meio sem graça, que o resto vem de você. Sua graça que compra os sorrisos do mundo. Só aluga os meus, que quando longe não dá pra estar bem. E quando perto, continua muito longe também. Tem dia que fere. Não saber se saboreio em querer junto, ou se espero de longe saber se é seu sabor. Dá pra sentir enforcar os meus medos, o aguardo desesperado e metódico por uma só decisão impontual. Vida que faço deleite de cheiros, de murmúrios, atravessadas pelo infinito de inércia consentida. Estacionado nesse lugar-comum, nesse lugar-nenhum. A covardia de bastar-me em querer. Se me ilude, aceito como destinação irrevogável. Convencido de que só, só me assusta. Enquanto não me acostuma a saudade dos ímpetos de riscar os riscos e segurar suas mãos. Olhar nos olhos, seus olhos. Tão lindos. Ouvir sua voz falar um pouco sem desviar-se de me dizer de si. De mim. Sem escapar. E só confessa, em tom de pena. Em desafino só o seu falar doce. Que se não, largo meus dedos dos seus, abraço e vou. Passo por passo, reclamar vida à vida que larguei lá atrás. Por frágeis vontades, apegos bobos. E agora a minha vida adora a sua.

Ausente de mim, presente de fim.

Ausentar-me torna presente um futuro mal passado. Cru. Viver ausente do si mesmo faz com que não me sinta preparada para o que está por ser degustado, esse futuro mal passado: meio cru, meio ainda presente. Futuro cru de maturidade, futuro que será um passado sempre presente de arrependimentos e vontades hipotéticas: e se?
Em ausências, me torno apenas leitora dessa compilação de roteiros que se cruzam em minhas páginas, rabiscando uma história sem minha letra, sem minha assinatura. Tomam-me em outras caligrafias que me aproximam do futuro incerto, ainda irreconhecível ao meu paladar. Mal passado. Eu ausente, ­sem estar pronta para tecer meu caderno com as letras trêmulas de quem percorre escrevendo apesar do que pesa. A letra estranha e bonita da história que não sofreu alterações nem rabiscos de um autor que se ausentou e presencia o prosseguir mecânico. Mecânico, estático. De um eu que não aumentou sua bagagem, mas sim deixou peças pelo caminho, diminuindo o que achava pesado pra levar. Não evoluiu. Pobre, pesou-se mais. Pesou-se do vazio, que permeia seus três tempos crus. Pesou-se do passado que carrega como manto, não lhe deixando virar a página, pois as linhas do presente contam as mesmas histórias já lidas, e o futuro é apenas a promessa de mais cópias. Futuro mal passado, cru. Cru como o corpo que segue vazio de alma: ausente. O corpo a ser preparado assim como o futuro insosso, para que possa ser degustado em minha caligrafia, no ponto certo de uma história sincera.
Ausentar-se não me isenta de problemas, medos, sacrifícios ou arrependimentos. Só me isenta e ausenta de mim, deixando espaço para preencher-me por cifras não musicáveis. Ausentar-me presencia o não meu e me serve no mesmo prato o que aceito e o que nego, desenhando um caminho indigesto.
Saia de trás dessa fonte, pega essa caneta e escreve tua história em letras trêmulas, preenchendo páginas com um passado em paz com o que já foi escrito, um presente em rimas e a certeza de um futuro desfecho surpreendente. Inspira tuas letras e expira a melodia escrita no pulsar do alguém legítimo, presente, caligrafando parágrafos carimbados de si.
Ausência que faz presente o silêncio do vazio do eu. Oco de mim, abundante em casca, seco de polpa. Não mais. Ausência que trazia presente um futuro cru. Prepare-se em corpo e alma, presença e calma no ponto de uma história sincera. ­


A vida é bonita, relaxa

Eu quero ver que a tal da vida é simples. Que fica meio complicada só quando a gente se preocupa demais em querer dar risada toda hora, todo instante, em vez de ficar contente pela dor que não tem. Porque os sorrisos, eles vêm. Te digo, vêm sim. São tão brincalhões que tem vez que se escondem, gostam de fazer surpresas, mas acabam voltando. Não por piedade, é por saudade mesmo, de quem os sorri. De alguém que os vive. Que a vida, ah, a vida é bonita, relaxa.

Tem hora, claro, que nada parece bonito, pelo contrário: dá vontade de apagar a luz do mundo e deixar tudo no breu enquanto eu sumo pra outro canto. Mas aí, quando ficar cansativo, faz o seguinte: rima, canta, grita, corre, pula, beija, dança, voa, sobe, desce, nada, olha, sente. Deita, dorme, sonha, e faz de conta que é só isso. Imagina que, a partir de agora, tudo o que é problema na vida deixa de ser problema nosso. Imagina que agora eles vivem só, por si só. Dão seu próprio jeito de se resolverem. Ou de se esconderem. Pra que a gente viva o que tem que ser vivido. 

A gente vai acabar vendo que muito do que parece ser problema na verdade parece que é medo. Só. Medo que a gente chama de problema, pra forçar uma condição adversa pra nos impedir de viver de um jeito que a gente acha que deve ser melhor. Por isso que nos sonhos a gente fica tão feliz às vezes sem saber como. É que fica tudo meio que na beirada, no quase, no limite do ser feliz a todo custo ou deixar de lado o perigoso. Aí a gente dorme, desliga essa barreira anti-vida e os sonhos nos abrem os frascos de felicidade. E derramam, sorrindo. 

E quando passa o aperitivo, é susto. A gente acorda decepcionado por saber o quão bom dava pra ser. Se a gente falasse mais, tentasse, acreditasse, ousasse, fizesse em vida todos esses subjuntivos clichês de epitáfio, talvez a felicidade-amostra virasse pão nosso de cada dia, sorriso de degustar mais vezes. Se a gente fosse como quando o medo some, dava pra deixar a tristeza intraduzível e ininterpretável, só à espera da alegria vir matar a saudade. 

Se demorasse, mais sorrível seria quando chegasse. Ou então, como surpresa, ela chegaria rapidinho, como quando vem você falando doce sem a gente nem esperar.

Última página de caderno

Quero despreocupar-me, entender que consequência é possibilidade, não obstáculo. Arriscar, igual a gente faz na última página do caderno: testa a caneta que parece estar falhando, e ela volta a escrever. Tenta desenhar uma pessoa, mas só saem alguns palitinhos tortos, aí a gente rabisca por cima ou arranca a folha e joga fora. Mas também nem por isso deixa de rabiscar. De riscar. De arriscar. De tentar achar o que nos faz bem, se é que isso existe plenamente em algum canto dessa vida. Mesmo assim, apesar da folha arrancada, o caderno continua tendo sua última página, sua tela de rascunhos, seu quintal de coragens, de medos, de dúvidas.

Imagina se só existissem “primeiras páginas”, onde a gente escreve bonito com uma letra forçada, que não é a nossa, só pra parecer que tem algo começando bem, começando diferente, começando a mudar. E muda - só para pior. A letra vai ficando mais feia, vai dando preguiça de manter aquela boa imagem. Tem gente que não gosta de mostrar o final do caderno pra ninguém, acho que é porque é meio que como funciona com a vida da gente. O início, superfície, é nossa cara de paisagem, a boa imagem que toda manhã a gente se força a passar pra evitar que nos perguntem o que é que temos, e pra evitar aquelas respostas “não é nada”, que dói mais pra gente que sabe que está mentindo do que pra quem ouve e sabe que é mentira. Aí as páginas vão sendo passadas pra trás, vai ficando longe aquela capa bonita, e tudo vai ficando mais a cara do que a gente é por dentro. 

Aquelas linhas que vem impressas pra tentar orientar a gente já perderam o sentido, eu as preferia longe dali, ou então retorcidas, erradas, pra se adequar à dificuldade que é a gente. A gente agente de ser. De ser não como “pode ser”, mas de ser como a alma da gente pede, como o que o coração reclAma, suplica, meio em silêncio, meio em sem-risos. Não fala muito porque nasceu com medo, mas é ele quem mais quer nosso bem. E o racional da gente não abre mão de decidir. Decidir errado, nunca de ceder ao mapa da felicidade a decisão dos rumos, dos prumos.

É, vou ver se mando uma carta para o senhor impera-dor da razão, ver se o convenço. Ver se o convenço de que minhas linhas não são preenchidas com razão, mas escritas aos trancos, ao ritmo do que o coração impera, ao som das letras que circulam por ele, oxigenando o refrão. É o que acontece nas primeiras páginas: tentamos imperar ritmo ao que circula do coração, forçando as letras para que pareça uma bela história. Letras bonitas que escrevem o vazio do que não é sincero. Não adianta. Logo ele deixa de caber em linhas. Transborda e pulsa letras arrítmicas de uma história real. De novo, a consequência é possibilidade, não obstáculo. Letras bonitas não deveriam moldar o ritmo da minha história. Porque não adianta, logo o coração deixa de caber em linhas, ou de acabar em linhas, quando não bastar sentir demais.

as-sombras.

A sombra de dias que me assombram as noites. Assombra por lembrar-me que já estive guardada pela nuvem que hoje me persegue em tempestade, chovendo em meu guarda-chuva gotas de um passado seco de boas memórias. Passado seco, mas que me molha os olhos e a paz de prosseguir. Desaguando tento escoar o que o assombro em nuvem trouxe até mim, molhando meus dias num dilúvio de coisas que gostaria de ter enterrado na gênese dessa lágrima.

Sigo protegida por um frágil guarda-chuva que me guarda do que gostaria ter doado ao vento. Me guarda das sombras do eu engavetado que evapora-se e materializa a gota que transborda meus olhos. Me transformei em parte desse ciclo de águas assombradas de um eu deixado pra trás. Deixei o eu, mas a nuvem persiste em me fazer sombra. Deixa chover. Deixa chover o que me molha do eu, hora de abandonar o velho guarda-chuva que agora vai guardar-me da covardia. Deságue sobre mim o que deixei secar lá atrás. Deixa chover e molhar o que eu fui, sou e serei, numa fusão que irá unificar meu mar.

Dos meus olhos agora sairão apenas as águas poluídas por arrependimentos. O que ficar será legítimo e não mais desaguará. Deixa chover, que o assombro dessa sombra de passado já secou, unificou o presente, fortaleceu o futuro. Deixa chover, aqui dentro já é sol. 

Se fosse pra rir seria com você

Está tudo mesmo escrito certo, por mais tortos e impossíveis que sejam as linhas, os versos e as vírgulas. Tudo pausado, esculpido, modelado, trançado, medido e pesado. Muito pesado, às vezes. Eu e a pequenez minha, a gente custa a entender. Eu perdido, pensando que vago por aí, mas passo por passo caminho o futuro que sempre houve de me ser assim, pedra por pedra largada em seu canto. Desordenou-me os sorrisos quando os quis de imediato, e a vida me guardou as alegrias aos momentos certos. Dosou-me de paciência quando não estava feliz, verteu-me em sono quando ficar acordado não me fazia bem. Assim vai me seduzindo o amanhã, crendo eu que os dias nascem, realmente. Novos e outros. Que a noite, afora a lua, o frio e o breu de estrelas, é quase um vácuo a se pensar e se deixar embargar a voz – que o silêncio não nos ouve chorar. Guardar em raros sonhos os futuros que só a gente prova, e que talvez não seja o mais cabível de se tornar presente meu. Pena é que tem noite que a mente foge e larga só vento frio sem coberta. Aí é engolir as horas mal-dormidas, mal-sonhadas, mal-passadas e acordar, recordar, recortar, te cortar de perto de mim, a todo custo, pra ver se um dia acordo sozinho sem estar só de alguém algum. Eu mesmo, só mente. Imune a você, quando provoca. Impune de você, quando me calo e você também não quer falar. Ou pelo menos parece, a mim. 

Quando teu rosto aponta doce lá longe, minha apatia te repele. Pulsa tanto aqui dentro que eu te repulso aí fora. E você, acho que desiste. Espera, desiste do que? De ser como nos sonhos: outra, mas a mesma que eu aceitei. Ou assenti? Preferia-te como anti-eu, que não a ter.

Mas que abstrato falar de vida! A gente é tão pequeno, mal sabe de onde veio, nem o que faz aqui ou o que acontece depois que a gente acaba, mas teima em sempre encontrar explicação pra tudo que não sai como a gente espera. Se faltou um sorriso, quero saber o que tenho de errado. Mas se ela sorri, eu me aquieto. A felicidade é autoexplicativa. E a tristeza, metalinguística. Fala-se triste sobre estar triste, cogitando a possibilidade de dissolver em desabafos o dissabor denso de quando não se consegue sorrir. Sorrir: se fosse verbo transitivo talvez eu o achasse mais fácil. Eu sorriria estrelas, luas, horizontes, ruas. Cada pedaço de mundo poderia ser sorrido, mas hoje, além de intransitivo, sorriso tem que concordar comigo. E se me falta o sujeito, pronto. Castigo.

Garimpo

Paro às vezes pra pensar no que eu reclamo. Como querer de ti amor, se nem o menor carinho sei dar? Porque chorar por quando deixa de me sorrir, em vez de me contentar com os outros sorrisos que me deste? Eu cria antes numa só felicidade, maior que todo momento chato que incomoda a gente. Mas ando achando que ela é feita mesmo de pedaços, ou pelo menos parece mais fácil entendê-la assim, procurá-la assim. Porque os instantes tristes costumam me confundir e exigir que muitos sorrisos o compensem. Mas aí fico esperando um mar de rosas e surpresas boas e risadas e amores - e eles não vêm. Vou me tornar então garimpeiro de alegrias. Catando sorrisos dourados e olhinhos preciosos, mesmo que não sejam esmeraldas ou águas-marinhas - quero apenas que brilhem. E os seus são muito assim. É simples, é pouco, é nada. E me faz bem. Estranho. Acho que Deus fez a gente assim pra sentir isso mesmo, ao menor sinal de companhia. E nesse mundo que eu não entendo, isso pra mim basta. Já que não nos veio nenhum manual do que estamos fazendo nessa vida, acho que essa sensação boa - de quando dá vontade de sorrir e te abraçar - é sinal de que devo estar no caminho certo.

Horizonte.

Confesso ser-me difícil encontrar definição para a palavra até então vivida em outra língua. Ausente de meu vocabulário, distante de letrar meus caminhos. Hoje a repito com frequência e ela, escreve por onde devo seguir.  Derruba suas letras por onde passa, deixando indícios do que busca significar. Talvez sejam Asas. Asas que me decolam, que me descolam de onde não devo permanecer. Asas que degolam minha vontade de ficar. Asas que me movem, guiadas por onde os ventos dizem que devo viajar. Voam, abençoam o maldito desejo de estagnar. Me levam por onde os ventos desejam soprar e, assim, sopram caminhos que me guiam ao que a nuvem seguinte me impede de ver. Nessas Asas vou. Voo. Voo por onde a sombra de asas alheias me faz querer ir. Seu bater de asas causam o vento que sopra meu destino. As asas que me fazem partir e me indicam a hora do pouso. O momento exato de pousar no amar. Pousar a mar. Velejando pelo que derrubei enquanto voava.  Em repouso ouso olhar para baixo. Abaixo, no azul mar que ama o reflexo das nuvens existentes em mim. Minha própria turbulência. O que sinto quanto te percebo em ausência. Balança. Descansa em mim o desejo de voltar. A mar. Amando o caminho de volta. Mas, a palavra, essa continua alada, ao lado da determinação. Terminação verbal não exata do sujeito meu. Mas sigo em voo. Hoje, voo longe pelo Horizonte chamado Belo. E várias outras asas me mantém no caminho quando acredito não ser possível permanecer no ar. Chorar. Chorar o distante que voa em direção ao passado. Chorar a alegria por realizar o voo sonhado. O distante castelo que hoje, chamo-o Belo.

AmarGo

Fazer-me frio. Desafio-me. Ser inerte a sorrisos e bem-dizeres, agradeceres, pedires e fazeres. Guardar em aço o coração que andou aberto, desfilando sua necessidade anti-solidão. Fez-se doente, fraco, hoje está cansado. De se apegar. De se segurar em tudo e em todos, agarrar com todas as forças e abdicar de autonomia. Fui perdendo o eu racional, espremendo, torcendo, extraindo o que pior me fazia – eu achava. Restaram-me emoções, palpitando em minúcias de possíveis felicidades maiores. Eu via tudo ampliado, decorado, provável alegria. E me esquecia da decepção que me assombra. Os dias marcados pelo quase. As palavras erradas nos momentos inoportunos. Fiz-me uma taça de erros, que degusto aos poucos, a cada vez que o amanhã me seduz de maravilhas... e eu acredito. Piamente. Sem nem olhar para trás. Para trás do sentido que quero sentir no que ouço. A vida sempre par, sem preparar-me, sempre ímpar, insuspeitável. Mas par. Em dois lados: O óbvio, que dói, e o que eu vejo, que me acalma. Mas é tudo simples de entender. Naquele ímpeto maluco, chutei a razão pra longe. Tive até sucesso, mas larguei um retalho desse papel maligno no bolso. Suficiente para gritar quando a outra – a tal emoção - decide. Para esquecer-me de cautelas quando a outra insiste. Para derramar-me tagarelas “eu-te-avisei” quando tudo vai pro ralo. Ralo de sempre, de sempre tender a você, a seu sorriso odioso, à sua frase ínfima de que faço sempre citação esplêndida, vocativo ambíguo, dedicatória subliminar. Refúgio do seu silêncio, que tento repetir em mim pensando que me virá. Mas acho que sumi de você. Recolhi meus sorrisos, deixando-te. Acho que fiz isso e ainda te culpo, te deixo. Me ensina a achar meus sorrisos, assim como os seus? Sinto falta. Porque agora tudo se esvazia. Palavras, gentis ou não. Sorriso, feliz eu não. Respiro fundo, buscando no ar pedaços, deslizes, brechas, possibilidades, ou só o cheiro seu. E o máximo que me ocorre é faltar o que respirar. Estico o braço, mas continuo caído. Sem mais forças. Sem mais nada. Perdi a noção do que me está reservado, e te coloquei na prateleira errada. Perdi as escalas e as escadas e tento apanhar o que não está ao meu alcance. Em vez de contornar tudo isso e voltar ao pacato que sou. Ao medíocre que pensa e faz. Mudo, não mudado. Imutável sorriso forçado que evita destaque ou pergunta. Imutável rosto sem vida que chora sem contar a ninguém, e assim se alimenta de sentimento, pra não achar que não o tem. Assim segue vivendo, o que lhe destina o destino desenhado, corrido e contemporâneo. Amorfo, apático. Talvez melhor fazer das palavras tossidas e torcidas e retorcidas e lacrimejadas meu álibi, pra não me condenarem, um dia, por ter preferido não te viver.

Sentidor

essa sinestesia toda
anestesia meu tudo-junto
sem ar-dores e amores, quero
sonhar cores e sabores, espero,
na dúvida do que deveras sinto
nessa saudade lúcida que te minto.

grito seus olhares pra que voltem
mas meu sorriso não lhe é mais palatável
meu cheiro já te fez amarga e amiga e
a migalhas meus outros quereres quaisquer

e no BARULHO cego desse seu perfume doce,
c        o       r     a    ç   ã   o    a   m o rtece.
e se amordaça,
mas
    se der
             (r)

                a

                m

                a.

Amortecente

E escrever esse nada, e escavar esse nado, como? Cravei braçadas vagas e perdidas e me vejo largado em alto-mar. Sem medo, sem nada. Não tem nem aquela música triste de fundo. Parece que briguei comigo mesmo e deixamos de conversar. Porque tudo vaza das mãos, vaza do pensamento, o que começo a sentir não se sustenta no peito e cai antes que eu busque uma caixa pra guardar os sabores. Só não se vaza da boca, nem em palavras nem berros nem beijos nem risos. Sou riso inerte. Não-rimas. Não ri mais. Só lamenta. Silente. Carente. Carente. Somente. Somente a carcaça da melancolia acostumada. Que se acostumou a melancolizar os dias bons, em notas novas nonas sinfonias quebradas em cima do meu coração surdo. Não sinto o fogo do mundo, não mudo o gosto insosso do fundo, não fuço o insano da vida.

O manancial de águas claras sumiu de mim, levou junto meus olhos. E a alteridade se afogou, acorrentada à alma minha que desexistiu. Sem que eu pudesse intervir, sumi do que me completava as metades, os terços, os quartos sem janela onde eu mergulhava em tudo que me fazia sentir e pensar como eu mesmo. E de uma hora para outra, fugi pelos poros daquela parede, e me restei, enfim, subjugado pelo neutro sentir só o tudo e o nada. O que eu fui e o que eu ando sendo. E esqueci como é sentir o resto.

Quando, às vezes, meus sonhos rompem a insônia e me visitam na desestrelada desatrasada desastrada noite, é como um chuvisco de caos no deserto de emoções que eu não sinto mais. Fluem incompletas caóticas randômicas saudades arrependeres amores pavores pedaços passados projéteis para algum futuro suponho eu. E faço de tudo para então chorar. Mas é deserto cá dentro, também. A lágrima foi habitar alguém menos frio, e agora lamento em palavras, e na ausência delas, e na veemência delas, e na demência aturdida de cada uma delas, de cada vírgula, que no fundo só tem vocação para reticências, mas nada decide. Frases aleatórias e descombinadas, mas que, quando orações, me satisfazem.

E me escapa um sorriso que eu não entendo, mas soa como cócegas na alma. Mais profundo que tudo, mas pro fundo de tudo é que vai nossa felicidade - e digo isso porque acabo de me lembrar de quando eu entendia o que era estar feliz. Me arrependo por, em vez de ter tirado foto da minha alegria, não ter aprendido como se repetia aquilo. E tem hora que eu me pego desejando que o depois durasse o mesmo tanto que o durante. Que aí a saudade e o arrependimento mal teriam tempo pra criar raízes e a vida ficava mais leve. Ficava menos, ficava leve, leve embora os excessos que não me fazem. Essa quase mutilação, inútil fração de segundo entre a amnésia que conforta e a claríssima memória, descrita em detalhes dentro da alma. Entrega-nos um “cale-se” coerente - nunca se ousa argumentar com o passado.

Mas agora já foi, já fui. Parece que ouço ao longe um zumbido verde. Esperança. Foi o nome bonito que dei para esse barulho que me assovia direto. Converso com ele toda manhã, e ele sempre responde. Ecoa, na verdade. Mas me ouvir é acalento. Agora só falta achar um espelho e me ver sorrindo. Achei que a metamorfose absurda dos dias de inverno só me tivesse deixado a casca. Mas não. Ainda está tudo aqui, eu é que estou meio cheio de mim, meio vazio de mim.

Morada Pulsante.

Corações selvagens não podem ser domados. O meu talvez não tenha a riqueza da coragem para ser nomeado selvagem, mas tem a fragilidade do desejo de ser livre.  E dessa forma é também indomável. Inapreensível. E livre. Livre do peso das certezas. Livre das imposições alheias. Ele caminha por si próprio, rumando sem rumo, remando sem prumo num mar baldio de sentimentos. Caminha livre procurando livrar-se de quem se prendeu a ele, deixando pra trás os débitos dos antigos habitantes que nele, um dia, encontraram morada. Moraram. Marejaram pelas águas vermelhas que por ele correm. Hoje, deságuam pelas quedas que despencam do olhar. Quedas d’água. Quedas mágoas. Quedas tréguas que permitem escorrer quem não mais mareja aqui. E aí, deságuam. Desabam dos olhos o que minha morada pulsante não permite mais habitar. Fechou-se. Estancou-se dos sangramentos. Saturou-se dos cortes e hoje busca a sutura capaz de fechar os portões de casa. Venderemos a propriedade, vamos morar de aluguel. E quando algo impedir-me de pagar a estadia em suas águas, seguirá também eu sem morada, até que sua maré me leve pra longe encontrar a praia. Sairei por olhos marejados. Seguirei também desabando pelos olhos alheios. Ou caindo de sorrisos felizes por me verem partindo. Não importa. Essa morada em hipertensão só quer se ver livre da prisão. Segue com a fragilidade do desejo de ser livre, reformando a casa em que muitos não souberam habitar. Dele saem marcas em barcas carregadas dos que sairão pelo olhar em deságue. Partem dos olhos marejados que os vê marejar oceano a fora encontrando outras marés. Que a brisa o leve para onde deseja. Eu? Eu sigo remando por um coração amando ser livre. Não. Não mais farei dele morada. A cura foi demorada, fizemos a escolha errada e agora é preciso ir. Segue pulsando e livrando, remando seu amando para longe daqui. 

Espelhador

Ego estranho, instável. Egoísta. Dependente de amores para me mostrar os lugares em que eu não sou. Pena que eu não saiba amar. Talvez não me caiba amar. Não me caiba mais que eu cá dentro de mim. Não, não pode ser. Jurava que eu tinha visto um pedacinho batendo descompassado do meu resto quando sentiu outro coração passar por perto de mim. Foi por isso que tudo meio que ficou esquisito. Meio difícil de falar. Porque emergir desse egoísmo é estar imerso num oceano imenso de gelo. Onde eu me derreto sozinho por quem às vezes me faz todo sentido, outras vezes me parece tão fria. Mas o próprio gelo é frio, a saudade é fria, a solidão esfria. E por gostar de frio, acabo em insistir num afeto oco, vazio, rouco, tardio, louco, vadio, pouco, baldio. Num ziguezague de coincidências e discrepâncias que sacam a rima e a destroem em ruído. Que fazem pouco de mim, desse eu que é tanto ego. Que tenta se ser mais um pouco mas não alcança. Ainda bem, pois se me derruba, arruína-me e eu deixo de ser. De ser, de sentir, de amar, de sonhar, de vivermos. Porque hoje minha maquete para o futuro é feito um viveiro de lembranças e de passados, de onde copio esperanças pra quando eu acordar amanhã o mundo ainda fazer sentido. O difícil é quando nesse otimismo forjado eu mergulho fundo e me orgulho, imundo, de em tudo acreditar. Então é tudo dicotomia, tudo incerto e ambíguo. E de incrédulo me despeço e despenco, quando me assusta o outro dois, a outra face, oculta e adulta de estar. O eu que desconheço, o seu que me apetece sorrir e dormir. Dormir pra sonhar o que não sei se me espera, mas que me acalma, mas que faz do meu hoje eterna véspera, do amanhã nosso que talvez venha, ou que talvez a gente só desenha, e que em traços vai ficando tão bonito que a gente se acomoda. Deixa a distância não incomodar. Deixa guardado um cômodo na alma só com esses "talvezes". É quase minha despensa, só de possibilidades, improbabilidades, eventos sonháveis, que eu faço questão de deixar ventar nos meus dias, nas minhas dúvidas, soprando fé, sussurrando amor, destrancando essas janelas e portas que eu fechei em torno de mim. Onde me fiz nesse cárcere. Nele entorno sentimentos roubados e mal-inventados, que me remedeiam, dopam minha tristeza, anestesiam-me da vida. Não! A morfina que preciso é outra. Amor, finalmente. Quem sabe é o comprimido que falta? O resto de mim, comprimido em alguém que me dose, me saúde, ou me mate. Arremate meus sintomas. Faça-me ter crises de sorrisos como efeito colateral, que aí eu faço da felicidade minha doença crônica. Sem cura.

Quando nada faz sentido

Alastra, se estraga, desmancha e desmanda essa ilusão que só hoje eu vi que é armadilha. O ideal, utópico e irreal foi feito pra não existir. E eu não percebia. Sensatez forjada, pra que me vale? Maturidade inócua e improvável, abstrata. Destrata quem tanto a venera. Sincera, era o que eu pensava que fosses. Mas de tão minha, haveria mesmo de ser mentira e errada. E de tão real que parecia, me assustei. As fendas, que eu achei que eram dois degraus pra quando eu escorregasse, de repente se abriram. Vieram me derrubar. E acabaram por me salvar desse amargo que é enxergar o quão absurdo tenho sido. Eu achava que meu caminho era reto, certo, coeso. Irretocável. Mas era só essa minha máscara, que me fazia outro pros outros. E essas minhas lentes, que tornavam outros os outros pra enganar a mim. E como ilusão que me era, que me erra, que quimera, caí na armadilha. A matilha de verdades me mordia e eu enfim ia largando o sorrir pra entender como nem tudo são flores. Eu distorcia os sabores, e tudo aprendi a gostar. Fel era doce aroma, azedo era doce amora e amargo era você amar. Meu mundo era uma linda receita, eu só não sabia o que ele iria me receitar. Me postava lá, inocente, gentil. Achando que eu sendo eu mesmo era o único jeito de viver. Pra variar, precisei do despertador atrasado pra me despertar, pra me espantar, desencantar. Hoje, tudo o que é cores primeiro me mostra os cinzas, antes que eu os esqueça. Antes que apareça essa triste coisa de sentir mais do que sentimos, de se deixar levar por palavra e sorriso. Sorrir todo mundo sabe, elogiar a gente acaba que aprende. E a verdade tem vez que sobe na ponta emersa do iceberg pra se dizer fiel e amiga. Pena que a autêntica verdade se esconde no fundo. Guarda-se tanto pra que só se abra a quem a mereça. E se custa a surgir quem merece, ela segue casta, perece até se desfazer com o sonhador que um dia decidiu cativá-la, mas que logo se foi, viu que genuíno na vida era só mesmo se iludir. E que mais certo ainda seria a desilusão. Por um lado, ele estava certo. Por outro, estava também. E hoje espero a lua com fome, pra me dar uma fatia de sono, que ela esconde iludida quando começa a se encher. Lua, me dá hoje um bom sonho, dorme comigo e não some, mas não queira, não queira crescer.

Sonhos Baldios.

Encadernei algumas ideias, botei-as debaixo do braço e fui pra rua brincar de sonhar. Sai caminhando pelos quarteirões da vida e ancorei em uma rua distante. Nela encontrei morada e por lá releio minhas ideias. E permaneço a tentar libertá-las do papel. Algumas vivem alheias a mim, em escritas apagadas. Outras se personificaram e tomaram conta do eu, e hoje me constroem de forma a me moldar a todo instante. Sou agora construído por minhas construções que desconstroem o que me impede de evoluir. Assim, reinventando-me a todo instante aprendo que não é glória poder afirmar que jamais mudarei quem sou. Inverto a óptica. Sou quem mudarei. Desvios de rota nos abrem os olhos pra caminhos livres do peso do planejar. Afinal, estou brincando de sonhar.
Perdi a hora nesse desvio de rota que me trouxe até o presente e hoje o desvio é que me aponta a direção, mas, me permito ser guiada pelo incerto. Talvez o incerto seja o certo pra corrigir meu incorreto. Movida pelo que é sentido, busco menos tempo equacionando o que está cá dentro estacando e mais tempo permitindo só sentir. E nesse movimento de lutar contra o que está estacado aqui dentro, resolvi doar meu desacostume ao vento. Aprendi que sentir é acalento dos que não se guiam unicamente pela razão e veem razão em emoção. Agora busco o desacostume do sentir, fugir da rotina que generaliza e engessa as emoções. Estaca aqui. Esta cá. Estou cá seguindo. Seguindo sentindo o desvio de rota imperar caminhos que me modificam. Hoje, ao ver mudado meu reflexo nas frestas de espelho dos olhos alheios, percebo que brincar de sonhar me trouxe até a rua certa. E por elas sigo com as ideias encadernadas que se libertam a desencadernarem novos eus. Enquanto isso continuo a brincar de sonhar na rua distante dos medos, na esquina entre o fui e o serei, onde me permito diariamente amanhecer ideia, entardecer ação e anoitecer em sonho. Realizado ou idealizado, mesmo que não haja sucesso, houve tentativas. E nisso consiste meu sonho: sonhar. Sigo encadernando ideias, a me criar. Debaixo do braço, as ideias e a vontade formam o processo criativo do meu caminho. Fui pra rua brincar de sonhar. Fui pros sonhos brincar de viver. Fui pelo caminho brincar de sentir. Parei. Ancorei no sentir. Sigo sentindo, mudo seguindo, sinto mudando. Fui pra rua brincar de sonhar, volto pra casa antes do anoitecer.


Viver

Verbo intransitivo ou intransigente? Finito ou infinitivo? Presente ou mal passado ou futuro incerto de pretéritos? Primeira pessoa do singular ou pessoa de quinta num plural devaneio de ilusões? Se eu me mantivesse no subjuntivo, se eu permanecesse em dúvidas, se eu continuasse nesse limbo de incertezas, de desatitudes, de desfazeres, eu poderia estar largando esse gerúndio eterno de quase-ideias, quase-fatos, quase-sorrisos, quase-amores, quase-vida. A única completa é a lágrima, no seu modo indicativo. Aquela que é, vem, molha, escorre, rasga, corrói e seca. Porque não tem força pra ser imperatriz, pra ser imperativa. E quando o sentimento se faz sujeito oculto, verbo irregular, os olhos transbordam a presença impessoal do vazio. Quando o vazio impera, a realidade segue sem concordância com os sonhos e a regência some num descompasso que impede a fluência da fala. Cala. Refaz-se na mesóclise o esconderijo do sentimento, ali guardados como desinências o medo e a descrença, esperando um vocativo doce que o liberte. Que o ensine a verbalizar os sorrisos, antes que as lágrimas falem por si só. Antes que, nessa luta por um eu em voz ativa, minha gramática lance mão das exceções e me impeça também de ser a partícula apassivadora do desejo de nós. Já que na realidade, eu sou o sujeito, mas não tenho predicados. E quando durmo, retiro a transitividade do meu eu pra ser apenas sonho. Nos sonhos, eu já começo pelo tu vives. Porque o eu eu já não tenho certeza. E então ele vive, e pulo o nós, porque ele está atado tão forte que nem se solta nem me diz o que anda fazendo. Se é que ele ainda existe, ou um dia possa existir. Pode ser apenas o eu perdido contigo. De mãos dadas, atadas, amarradas em nós. Em nós. E no mais, vós podereis viver em paz, se o nós não lhe significar muito. Enquanto que eles sim, vivem, cantam. Sem nós. Só eles, que cantam e sentem. Pra eles, está tudo já escrito, já traçado: amem. Amém. E pra nós? Tenho medo de desfazer a metade e sobrar apenas um nó. Porque você ainda é a primeira pessoa do meu plural. E sem o nós, meu presente some. Vou viver entre o que era perfeito e o que podia ser mais-que-perfeito. Numa eterna imperfeição por ter-me corrigido da sua conjugação.

(com Ariane Harbekon)

Desaba(fa)r

Às vezes é bom ter alguém pra desabar. Desabafar.

Alguém pra eu desabar a desabafar que acabo de desabar por alguém. Alguém pra falar aquilo que eu nem sabia que dava pra sair em palavras. Alguém pra eu desistir de falar aquilo que não vai sair em palavra alguma, de jeito nenhum. Alguém pra me falar palavras sem motivos, palavras sem sorrisos. Alguém pra me trazer palavras em sorrisos, sorrisos em palavras quaisquer. Quaisquer que sejam as palavras, quaisquer que sejam os sorrisos. Alguém pra chorar por você. Alguém pra só orar por você. Alguém pra te alegrar, alguém pra se negar a desalegrar você. Alguém pra desabar de tanto rir com você. De você. Pra você. Alguém pra estar lá ou para não estar mas pensar em estar. Alguém para pensar em mim, pensar em mim mesmo quando eu mesmo(a) esquecer. Alguém pra não se esquecer de que hoje eu posso estar desabando minha tristeza, desabafando meu fracasso em algum lugar. Alguém para desatar esse eterno sucesso em nunca acertar. Alguém para me desatar as fraquezas e me fazer pensar que posso ser melhor. Um alguém que seja você, alguém pra me fazer crer que a vida pode valer. Você, pra me confessar que eu sou o lugar que você quer ir se confessar todos os dias. Você, pra me chamar, sem descaso, de casa. Eu posso ser um peixe, que minha casa não será a água, um pássaro, que minha casa não será no ar. Posso ser eu mesma, que minha casa não é para onde vou todo dia dormir... Dizem que casa é onde descansamos, onde nosso coração está, pra mim esse lugar não é físico é mental, ele é você, eu estou em você.

(com Isadora Fachardo e Safire Bicalho)

Degradê

É um querer eterno em entender. O interno e o externo que são diferentes, que se escondem, se mascaram, se escancaram, que é meio inferno. Que é meio céu. Meio céu no por do sol, que não sei a cor que nele vejo. Parece azul amarelado meio vermelho ou rosa. E mergulhar no mundo é meio isso mesmo. É meio duvidar de ter dúvidas, acreditar em ser tão cético, descrer em desvidas onde não há nosso caos. Caos: nossas ocas em pedacinhos misturados. Nossas casas. Nossos dias. Intrínsecos. Vivíveis. Convivíveis. Cotidianos.

Mas bem que podia ser um cais. Teria lá um barquinho amarrado descansando. E outro se equilibrando na linha do horizonte. Meio aqui, meio lá. Meio a velejar, meio a dissolver no mar. Meio cá, meio ali. Meio a sumir de vista porque o caos faz mais barulho e barulho é efeito sonoro de vida. É defeito sonoro dos impossíveis calados que sonham sem precisar dormir. Que sorriem sonhando, que sentem que sonham sorrindo e chorando, que sofrem porque sonham e não sorriem, que somem quando choram e não sonham, que sonham quando cansam de chorar. E acordam pra vida sem se lembrar do que choraram de noite. Aí sorriem quando podem e também quando pedem. Aí também choram. Quando podem e também quando impedem. Aí sonham quando sonham com o barquinho quase caindo pro além do horizonte. Como se ali fosse uma cachoeira, uma fronteira, uma laranjeira sob a qual tudo é sombra. Engraçado. Sempre parece que há um fim. Mas não. Tudo vai eternamente em voltas. É esse mundo que em volta da gente tem cara de mau, mas que só quer sorrir junto com a gente. Quer que a gente vá no barquinho até dar pra ver que não tem nada a ver. Ver que tudo está num só, nesse trem que a gente chama de vida.

Eu, lírico

E que vida é essa que vivo e me leio e me livro d’escrever como é você? Que alma é essa de que sinto tanto muita falta falar contigo? Que dia é esse que só se adia do hoje e invadia meus ontens perdido no amanhã de sempre? Que sonho é esse que não sabe mais me sonhar e que some de vista e a vista sem prazo pra voltar a parcelar meu real e onírico? Que silêncio é esse que vem barulhar-me instigando melodiosos sussurros abafados? 

É porque tem dia que o dia acorda parcialmente nublado e a gente acaba por se nublar também. Aí a alma aproveita a rima e decide dublar nosso sentimento. Então lirifica desabafos e torna tudo melancolia em versos alexandrinos, tentando dar-lhe valor que não há. E tudo faz sentido por alguns minutos. Até que a epifania que todo mundo guarda no bolso de algum casaco perdido no guarda-roupa resolve aparecer. E eis que começa a filtrar o que realmente faz sentido. E tudo é água. Tudo se esvai, se vai, cai. Perde o sentido querer achar sentido na vida. Esse dissabor quase metafísico de deixar se desentender de tudo dá uma dor funda. O vento esquenta, o sol não sai e a lua míngua, míngua, míngua. E o sono vem cedo, antes de ser hora de querer sonhar. E os sonhos assim nos abandonam e deixam o sono nos dormir a noite inteira. Num mero stand-by do mundo mesmo ele de sempre. Até que a gente tropece em alegrias amanhã de manhã na rua e se esqueça de tudo isso. E tudo desfaça de fazer sentido e volte à vida ávida dádiva vívida dúvida de todo dia, que os sonhos virão disfarçados de realidade, e vice-versa, quando seu olhar de novo te sorrir sem você nem lembrar.

Isso é um continue.

Isso é um continue. Um prossiga. Prossiga com o que sente aí... e continuo sem saber por onde continuar. Continuo sem continuidade. Vaidade.
Nem sempre seguir sem rumo é sinônimo de liberdade. Quando me falta o rumo, me sobram incertezas, as quais me subtraem a leveza nessa divisão entre o sim e o não. E aí, acabo ficando pelo caminho. Fico pelo que não completei, vagando pelas hipóteses deixadas. Rumando sem rumo fui obrigada a fazer escolhas. E escolha é exclusão. Gostaria de ter feito acolhas, e acolher a todos os atalhos desse caminho sem rumo. Mas não pude, fiquei com os retalhos. No atalho até aqui retalhei todo o resto e segui com os pedaços. Mas segui, afinal, isso é um continue. E continuo com o que vou escolhendo, independente do que esperam que escolha.  O que te parece bom, a mim não o é. E já que escolher é excluir, excluo o que não se parece com opção, e sim imposição. O que se impõe me opõe. Continuo por opção, já que as escolhas se impõem de qualquer maneira. De novo escolhendo; escolhendo a que devo continuar.  Alguém de mim ficará de fora – para esse alguém minha continuidade será interrupção. Mas vale, pois o que seria continuar se não interromper? Interromper o que te impede de seguir adiante. Ou seguir de volta, que seja. Reencontrar é também avanço. Por isso, busco reencontrar a parte a partir da qual deva continuar. Queria poder levar todas as partes como um todo em mim, mas algumas delas me prendem e impedem o movimento. Talvez eu queira me prender a elas, mas não deva, afinal, isso é um continue, um prossiga. E nesse retrocesso busco o avanço entre o que deixo e o que levo; entre o que prende e o que motiva o movimento, entre o que levo e o que deixo. Sim, você. Você está nas duas pontas: no começo e no fim. A continuidade e o retrocesso, motivando minha ida e minha volta.  E nessas idas e vindas sem volta nem rumo continuo remando, rumando por não sei onde pra chegar a não sei qual lugar. Só sei que você deve estar lá me esperando, afinal, isso é um continue e nele você é quem motiva o movimento. Então prossigo, com um pouco do que levei de você e te deixo a continuar com o que deixei de mim. Em caminhos opostos ou opostos cruzados, continuemos.  Continuo sem saber por onde continuar, mas continuarei até encontrar. E se no fim desses atalhos você não estiver lá, entenderei, au revoir!

Alegoria [#poesia]

Tão logo deixei de vagar
Duvidei desse nada doce destino
Deste hino de plural felicidade
Deste mural de constantes desatinos
Ora, se agora se contam momentos
Deixaste, ó vida, de sê-la!
Selarão meu caixão com minhas trinta mil felicidades
E registrarão todas em cartório
Venderão o cento delas, como os brigadeiros
E há de haver promoção no dia de finados.

Dona

No esconde-esconde com a felicidade eu sempre perco a conta das vezes que ela nem conta e vem me achar antes que eu já tenha me escondido. Vem, felicidade, meu esconderijo eu desfaço fácil. Difícil é te procurar na caixinha de músicas e não te ver dançando. Exala seu sim a mim e exila esse sol do meio-dia. Que a vida quer andar, girar. Virar desamores perfeitos roteiros de ficção amadora insensata ilusão. Nada: a nata dos impensamentos meus, quando a minha metafísica é estudar a felicidade clássica. Aula prática. E as intempéries das minhas dúvidas questionam quem sou, provocam e não chegam a conclusão alguma. Mas alguma coisa boa deve haver em tudo isso. Sabes tu disso. Quando sorri, sorrimos. Quando chora, consolo. Quando eu sumo, você acha um atalho e me acha os retalhos e me junta em você. Sem nem merecer, eu poderia rimar. Mas pra você eu sempre mereço. Por você eu tento parecer que tudo merece um pouquinho de ti. E acredito nisso há tanto tempo que não tem como não ser, como des-ser, como descer desse abraço. Só sobra crescer nesse amor, prover esse desembaraço de tristezas com outro abraço seu. Provar pela milésima vez que tem um coração do tamanho do nosso, e do tamanho do mundo, que cabe o meu também. Cabem orações vidas três inteiras filhos que amam você. Podia ser sobre felicidade, ou sobre a mamãe. Mas o manto de tudo-que-há-de-bom é o mesmo, e sob esse carinho todo sei que são mesmo a mesma coisa.

A Você.

Meu interno exterior. Meu externo intrínseco. Minha composição, formação, canção, lição. Vinte e três do eu quarenta e seis. Um tudo tão essencial e ao mesmo tempo tão singelo, tão frágil. O complexo que se desfaz ao ver os primeiros passos, as primeiras palavras, as primeiras lições da escola, e assim trata a todos os acontecimentos como “os primeiros”: únicos e especiais. Que haja repetição, que venham os caçulas-  será tudo sempre como o primeiro, a estreia. O choro do nascer ao casar.
A esse dom de individualizar entrego meu coletivo, minha coletânea. À coleção de eus que já possui, e mesmo os que ainda estão por vir têm repouso em suas prateleiras. Posso buscar novos volumes com novas canções, belas capas, mas, sem seu acomodo não tenho por onde me organizar, me guardar, me apoiar. A essas prateleiras que sabem a ordem necessária para cada momento de minha coleção, revelo meus volumes.  A você, que aceitou dedicar incontáveis dias de sua existência para existir a minha. A você, que é a referência inabalável de cuidado e proteção em todos os momentos. A quem se esquecia da coreografia para assistir aos dois pedacinhos que dançavam com seus olhos. A quem acreditou muitas vezes no impossível para possibilitar minha cura. A quem sonhou comigo, e a quem hoje realiza saudade. A quem hoje me é referência do que faz falta. A tudo isso, qualquer coisa se torna pequena. Mas a isso, deixo em gratidão tudo o que é meu – tudo o que você me deu. A você que é casa, porto, paz. Ao que amo. Chamo. Ao que é amar. Contemplar. Ao que transmite sabedoria. Calmaria. Ao que repreende. Aprende. A quem caminha comigo nessa jornada. Obrigada. Ao seu dia. A você: Mãe.

Missão

Apreendi-me em ti. Aprendi a mentir. A prender-te em vista minha, investi na desmemória e caí numa retórica revoltada, revirante, reciclada. Uma encíclica de inverdades outrora autênticas. Agora jaz faísca abrasada de sentimentos. Isca desabraçada, em ruínas de rapinas de adormecidas adrenalinas. Hoje vãs. Vândalos dos acasos e descasos da minha ex-vida. Porque em vida as fagulhas são vaga-lumes, num paraquedas que não ia abrir, e não abriu. No chão, somem. Subtraem do fogo estrelas cadentes em chama. Traem a fé no infinito. E se multiplica em vazios a escuridão, que nos cura os olhos. Escuros olhos, claros olhos, caros olhos. Repara olhares em vírgulas, pisca a cada frase e morre em cada ponto. E esse manto tem só letras. Sem sinais. E mais, falta-me o orvalho. Ou que o valha. Que aspirja seu suor sobre os pirilampos e os abençoe. Sofreram minha ira e viraram pó. Só. E eu inda vivo, na berlinda aqui. Um tanto quanto pranto meu, diria. Acalanto fino do destino, orgulhoso do dever cumprido. Do espanto comprido, no entanto, contido. Fiel vigia de todo momento. De todo futuro isento de chance. O além além do alcance. Frustro-me, e custo a me perdoar. A ter do ar pena e inveja. Veja, lá se voa e se venta. Aqui se senta, e mal se vê. Fere. Fura a pura sensação de nada. De estrelas letradas em epopeia na noite. Em baladas por alguém. Enquanto ninguéns sobram cá. Cabe-nos nessa esquina azul? É, só tu. Soturna. Noturna. Eu não, durmo. Urgem sonos. Ponho sonhos na lista. Em dádivas esperadas que me são o não-você. É fogo.

Metade aqui, Metade lá.

Essa partida abalou minha vinda. Talvez se o peso das primaveras não fosse tal como é, teria transformado a partida em reencontro. Difícil é decidir à qual das partes devo me reencontrar. Metade aqui, metade lá. E nada por completo, tudo por se completar, contemplar. Contemplar a metade distante.
Me vejo feita em duas, sem possibilidade de união. Meu novo caminho parece ter sido traçado sobre um paradoxo.  E nessa viagem de divisões estou me equilibrando entre os reencontros que partem. Dividem-se. Dividem-me. Duvidamos.  Me afasto do que me escolheu pra seguir o que foi escolhido por mim. Mas volto. Meu escolhido pede a volta. Reaproximo-me do que me escolheu para senti-lo como o que me acolheu.  E que a melhor escolha me acolha. O escolhido, acolhido; o que escolheu, acolheu. Todos são escolhas, folhas. Nelas escreverei, e me permito a licença poética para seguir em dois capítulos: o que ficou e o que virá. E um deles, me acolherá. 

Passatempo

Eu recordo. Eu recreio. Nos intervalos da minha consciência, pelo fino das frestas entre as festas quietas da minha vida. Só não sentia. As fendas eram só frestas no chão, não existia o profundo. Agora dá pra ver direitinho, por baixo. Alpinismo de pensamentos, de existência. Uma parede que machuca mas que te faz flutuar. Ou então cai e fica. FICA! E fixa. E pizza. E pisca. E fisga. E larga. E amarga. E a carga que pesa continua, apesar. Tudo nas costas. Sem encostas. Sem crostas. Só alma. Só lama. Só mal. Bem, que passe. Não pulse. Mais. Fantasiam que não há azia nisso. Pena. Tempo não é tudo, coitados. Talvez ele se chamasse tortura, mas acharam que não era muito sonoro, poderia prejudicar as vendas. Aí veio “tempo”! E a gente sempre aposta nele. Mas esquece disso depois. O maldito já levou nossa memória e ainda ganha os créditos por isso. Pra mim, covarde. Apaga minhas tardes em vez de fazer a vida deixar de arder... 

Hoje já vendem isso em doses, engradados e barris. Só fingem que é outra coisa.

Empírico

Nesses últimos versos, desses públicos tempos, com esses múltiplos ventos, vi que és tudo. Estudo-te, de mim a você. O contrário é filosofia. Só fios de um novelo frágil, quase choroso. A tear. Atear um frio sobre esse seu rosto, esses seus olhos, que agora só te escondem. Às vezes até demora, mas responde. De pouco em pouco decora. Às vezes retórica. Pergunta. Resposta. Pergunta. Reposta. E gosta. E gosto. E mostro que sim. Eu monstro que assim te quis. Fi-lo por que a queria. Queria eu quisesses-me também assim. Pois então, o tempo é tudo. Um dia é tampa, outro vai ser tombo, noutro também. Até que seja, sei lá, um tambor. Pra gente batucar na vida o sonho que a vida nos batucou.

Bem vindo, mal passado.

A mudança chegou disfarçada em forma de revelação. É que como se o tempo estivesse me revelando que o novo, o diferente é o que agora me constrói. A mudança não se fez perceber. Chegou sem avisar, e quando percebi já estava sendo apresentada ao que de mim se tornou passado.  Agora me vejo em uma tarefa. Preciso decidir o que fica e o que deixo partir. Tudo ainda permanece intocável, mas meu rearranjo me exige abandonar ou realocar algumas coisas de lugar. É hora de trocar as vestes do antigo para torná-lo novo, ou apenas guardar com ternura o que ainda merece permanecer como uma lembrança. E você, onde vai ficar? Vai se perpetuar como passado? Vai se readequar ao novo? Ou apenas se vai? Não vou decidir. Deixo sem definições nítidas o limite entre presente e ausente; serás livre para transitar. Tu e todo o resto escolhem onde querem habitar. Carrego comigo somente o que já está vestido de lembrança e o que já tem ternura em seus traços. O resto que decida de que forma quer ser carregado, se ao menos quer. A existência definirá. Só tenho pressa, e será definitivo. Uma hora serás trancafiado na prateleira em que mais se acomodou, dando espaço aos novos livros que chegam. E chegam em branco, com histórias a serem escritas por mim. Eis o novo, a mudança, a revelação. O que era presente já não é mais. Sou agora o que planejava ser, e o que era... esse não foi deixado pra trás. Esse sutilmente se tornou outro, se reconfigurou. Novos livros chegam; Já vêm com capa, título, introdução. Mas já começo a escrever as futuras edições, e deixo sem peso o que não quiser vir comigo. Fique. O novo é belo, me faz trocar o medo do desconhecido por curiosidade. Que venham os frutos futuros; transforme as mágoas em águas passadas.  Se esqueça da história que não mais lhe agrada, rasgue a página que ainda lhe tem valor. Grife, sublinhe, recorte.  Novas páginas em branco aguardam, e aguardam o que só você pode preencher. Seu conteúdo, seu novo. Mudança que define a permanência – o que permanecerá em minhas novas prateleiras. O que é bom, que fique. O que não é, que vá. O novo chega: Seja bem vindo. Seja mal passado.

Pertencente

Tá aqui. Tique-taque. Tique-taque. Traque. Truco! Mas é a verdade, te escondo sob meus eus, querendo de ti ouvir um "meu", que me te pertença. Ti, presença. Silencia-te? Bem, mas pensa. Pensa bem. Pensa, bem. E não pensa demais. Só sente. Sente só. Só. Sente? Não? Invente. Tente. Sente? Venta. Frio molhado. Venta o meu vento. E uma água quase benta. Sua. Seu silêncio. Seu vento. E eu então que invento um conto novo. Conto que você me sente, e me tenta. Eu, vento. Aqui. Você, vento. Quer o lá. E voa. Viva pois. Não eu. Que eu não vou. Voo, às vezes. Só. Só. Vê? Se não vem, vai, voa, viva. Lá. Não aqui. Meu, sou sim. Assim. Se não sei, só sou... seu.

Meu-não-meu bem.

É duro admitir a falha quando dar seu melhor é ainda insuficiente. Difícil aceitar que seu próprio esforço não lhe bastou. Cruel. Meu próprio esforço não basta para meu próprio bem. Deveria bastar. Meu bem estar não me pertence, não realizo minha posse. Minha posse não me pertence, não é minha. É quando percebo que talvez exista uma força maior que nos interliga e nos torna dependentes de diversos outros “eus” para realizar nosso self. Outros eus que também não são meus, mas ainda assim interferem no meu-não-meu bem. Ou mesmo essa rede de conexões seja criada por mim, e aí, a crueldade fica por minha conta. Sim, por minha conta. Por deixar que expectativas externas sejam internalizadas por mim, tornando-me um protótipo de realizações. Pseudo-eu; Pseudo-você. Não completo nem o que criei e nem o que absorvi de sua criação sobre mim. Será mesmo necessária tal ritualização da busca pelo que nem mesmo perdi? Não perdi meus anseios, eles estão aqui. São o meu bem. Mas insisto em buscar a realização que está fora de alcance, distante do domínio do meu. Distante do domínio do bem. Meu bem se desfigura. Meu-não-meu bem.  Seu-não-meu bem...mal. Pare. Talvez não seja necessário ligar-se a todos esses eus exteriores. Apenas aos que te devolvem a posse do bem. Deixemos de aceitar a pseudo-existência, pseudo-realização. Abrir mão da posse do eu é pseudônimo de felicidade, não a é realmente. Por isso, talvez seja hora de manter o elo com quem te demonstre posse de alguma forma. Seja como devoção, oração, coração. Não entregue a posse do seu-não-seu bem à quem não te pertence, à quem te reafirma a ausência do “seu”. Passe a possuir ao invés de doar-se. Dominarei o “meu”. Só me permitirei interiorizar o que de alguma forma me ajudar a exteriorizar meus anseios. Paradoxal. Talvez seja realmente necessário incorporar alguns eus, manter os elos. Alguns. Os essenciais, essência(is). O resto, que passe a fazer parte do que não possuo. Meu-não-meu seu. Seu não mais meu.

Almar

Que a gente fale, que a gente se fale, se esfole. Retalho por detalhe, me conta. Ouço vozes e sarcasmos, mas finjo que é a trilha sonora do meu caminho. Caminho de nuvem, pedra e chuva. Amor, muro e mar. Pavor, puro, amar. Sabor, turvo, chorar. Aqui tudo é tão intenso, tudo tão tenso, sedento, detento, redento. Entende? No fundo é diferente, lá tudo flui da mesma forma. E essa dualidade às vezes machuca. É tudo tão bom, e tão ruim; tão só, e tão seu. Tampouco as amoras são constantes. Inocentes, frágeis pedaços de tempo. Despedaçáveis. Sem desesperos. Só inspiram. Sabores doces e indóceis dissabores. Silêncios em dissonância. Receios ressoantes, revoltantes. Irrelevantes. A amora se desfez, mas marcou seu pedaço de tempo, antes que a amargasse o medo, o ruim e o “só”. Por isso talvez o dois, os dois lados, os dois rios. A solidão desfeita pela raiz, a divisão, os retalhos, a multiplicação de egos, a consciência eterna confidência. De experiência, indecência, preferência. Prefiro assim. Não, nem prefiro nem interfiro. É isso. Atávico, imutável. Mas nas batalhas persuasivas dói o peso da decisão. A madame consciência fala, grita, chora e sabe. Eu calo. Ouço, rio, choro e digo que sei. No fim, deito e durmo enquanto chora baixinho lá dentro a sabedoria. A euforia, a aporia, a histeria, cada qual em seu canto, guardadas. E o vazio dos sonhos é a greve da alma. Esvaziada, enfraquecida, esquecida. Diluída, ela clama, chama, trama. Ama. Mas não parece um pesadelo! A manhã acorda, e quem não se recordou fui eu. É o arrependimento da outra lá dentro. Que crê, se ilude. Crê. Desilude. É primitivo, o racional mais consciente de todos. Apaga tudo. Afaga, paga, alaga de tudo novo de novo. E vai nisso, não sei se amora ou namora. Tipo a alma.

Docesquecendo.

Talvez seja necessário algum tempo pra me acostumar aos novos sabores. É preciso certo tempo até o amargo tornar-se doce. Questão de hábito, talvez. É hora de deixar o sabor preferido um pouco de lado, pra ter aquela sensação de saudade quando provar de novo. Aquela fusão de sentidos que te permite reviver saborosamente o passado. E pra isso, meu caro, é preciso deixar de degustar o mesmo sabor todos os dias. Assim, quando prová-lo novamente, saberei se de fato é doce, ou se era apenas o muito amargo que me deixei acostumar. Não julgarei sua essência. Quem decidiu provar-te de tal maneira fui eu. Chego às vezes a imaginar que sejamos responsáveis até mesmo pelos sabores que sentimos. Mesmo o mais doce se faz amargo se o coração não se aquieta. Meu paladar não é sincero, não julgarei sua essência. Apenas vou à busca do que irá alegrá-lo. Sabor de chuva. Sabor de primeiro dia de aula, sabor de cheiro de mar. Sabor de amizade, de colo de mãe. Tudo tão singelo, e tão singular. Não minta, sei que degustou todas essas sensações comigo. Da mesma forma que eu, tu sabes também como cada um desses ingredientes deve ser apreciado. E é dessa forma que vou deixá-lo tornar-se um sabor de saudade. Talvez essa seja a melhor combinação entre seu sabor e meu paladar. Ou talvez nos faltassem ingredientes. Talvez precisasse de um pouco mais de ternura e sinceridade pra adoçar-te. Não importa meu caro. Gostaria apenas de saber qual sabor tive pra ti. Se ao menos tive. Peço apenas que também não julgue minha essência, ela pode ter sido deturpada por seu paladar desleal.  Fecho os olhos. Sinto pela ultima vez esse sabor de indefinição. Esse sabor que tanto me agrada e que ao menos sei definir suas nuances. Da próxima vez que vier brincar com meu paladar quero que se apresente primeiro.  Quero ter consciência do amargor. Não que o sejas de tal sabor; talvez seja meu coração inquieto.  De qualquer forma irei poupá-lo de mais desdobramentos dessa história sensorial. Sabor de despedida. Amargo. Sabor de lembrança. Doce. Sabor de arrependimento. Amargo. Sabor de sentimento. Sentimento de saborear. Amargor, doçura. Aquiete-se, coração. Saboreie a saudade. Ela começa a ser apreciada agora. Doce. Doce. Talvez essa seja a melhor combinação entre seu sabor e meu paladar. Doce, Doce.

Rima

Em tortos sorrisos, entorto minha desalegria e entorpeço meus sentimentos. Congelo-os, eles se recolhem e esperam a sociabilidade cessar. Voltam logo em prantos, encantos, em cantos soando cantos de lamentos, sofrimentos. Arrependimentos. Aqui dentro tudo gira e para na grade do eu-não-eu. Faça isso, seja aquilo, e nada se faz. Efeito dos meus maus preceitos, tristes defeitos e inevitáveis trejeitos. É desse jeito, aceito que já nada enfeito, tudo está feito conforme a receita. E me parece que o mundo se deleita, quando o medo espreita e o fracasso me deita no chão. Não, rima ficou lá em cima; palavra não muda meu ego, só mima.

Maçãs

Tem hora que eu acho que a vida é feito aqueles jogos de cassinos, que a máquina tem que parar com os três símbolos iguais pra você ganhar o prêmio. Pena que na vida, assim como nesses jogos, sai tudo desencontrado. E cada fileira não tem nada a ver com as outras duas, parece que ela está ali pelo simples desleixo daquele maldito aleatório. Ou então só faltou uma maçãzinha pra você tirar a trinca e levar o prêmio. Mas aí a gente tem que se contentar em ter só uma ou duas, e infelizmente acreditar que não temos nada de especial. Aí você busca no fundo aquele otimismo e tenta entender o lado bom de ter jogado naquele absurdo impossível e ainda por cima ter perdido. E quando você então acaba perdido, logo se arrepende de ter gastado ali algumas de suas fichas. O vício tenta fazer-te jogar de novo, mas você tem medo de ser de novo um fracassado. E carrega aquele fracasso vida afora desencontrando a razão de tudo aquilo. Até que um dia algum garotinho ou garotinha que muito te ama te dê a terceira maçãzinha embrulhada numa fita, ou que talvez você encontre duas num rosto sob um véu branco, e de tão feliz nesse dia nem repare que as alcançou. Bem, uma das maçãs mais famosas da história caiu um dia de uma árvore e consagrou um cara. É porque deve mesmo valer a pena tentar encontrá-la.

Um adendo pulsante.

"É, ouvi foi o seu coração pulsar mais que duas vezes e meu próximo parágrafo ficou sem palavras. Então meu coração achou por bem continuar a bater em vez de pulsar palavras pouco verossímeis para seu coração inconstante. Sei que foi fiel ao meu vazio, ao meu desengano em descrever o que eu pulsava, mas acaba assim. O coração é quem manda e desmanda e desmonta e desfaz. Dessa vez só não desfez o que ainda não estava feito, porque de resto já sou outra. Não conto mais os pulsos do meu coração, sinto que se tentasse teria um infarto a cada parágrafo, a cada exclamação indevida. Devido a isso, largo meu lápis e deixo-te ir, sonhar talvez com o fim desse rol de inconstâncias, ou só deixar bater feliz o escritor maior de nossas histórias pulsantes."

Significamando.

As palavras não ditas me sufocam. Sinto uma vontade incontrolável de dizê-las. Mas quais? Estão difusas, confusas, ainda sem tradução. Ainda não deixaram de serem sentimentos, é preciso refino para codificá-los nas palavras corretas. Sentimento é a gênese dos textos, e minha página ainda está em branco.  Está também porque cansei de preenchê-la com citações. Basta de interferências, esse é meu parágrafo, e se preciso for vou apagá-lo e reescrevê-lo quantas vezes os sentimentos pedirem.  Sim, eles pedem pra se materializarem em linhas, é preciso apenas saber como traduzi-los. É o que me falta nesse instante. Estou cheia de palavras ainda sem tradução. Uma pena já possuírem tanto significado a ponto de me sufocarem pedindo voz. Pedem sílabas, linhas, parágrafos, mas no fim o que querem mesmo é voz. Querem penetrar nos ouvintes, querem transfigurar-se em novos significados e tão logo em outros sentimentos no interior de quem as recebeu. Da página ao coração. Não, do coração à página, e da página a outro coração, afinal, o que se é dito tem sempre um destino. E por isso estou sufocada por minhas palavras. Elas querem te atingir. Querem significar em você. Querem seu sentido, seus sentimentos, e para isso minha página precisa deixar de estar em branco. É hora de escrever meu texto e parar de assistir ao que as citações te causam. Isso não me livra do que está preso aqui. É hora de transformar minha morfologia em sintaxe e romper com sua ordem. É hora de meu texto significar em você. Preciso apenas de sua ajuda. Preciso que pare de me causar sentimentos tão difíceis de serem traduzidos. Estão todos aqui, presos sem poderem ser ditos, pois não consigo decodificá-los. Pare com isso, leitor. Assim você torna mais difícil preencher minha página. Assim minhas palavras nunca chegarão a ser poesia. Como rimar o que ainda não achei formas de traduzir? Será que o que sinto rima com você? Me ajude, leitor. As palavras permanecem me sufocando, querem voz. Busco formas de significar esses sentimentos todos tão confusos. Temo seguir com a página em branco.

Vem, vamos escrever juntos. Vamos unir os parágrafos e sermos um texto, unidade. Nosso tema é o mesmo. Do coração à página, da página a outro coração. Nossa página irá pulsar duas vezes. Toda essa metalinguagem não me abrange... Minhas palavras ainda estão aqui, leitor. Onde estão suas palavras a rimar com as minhas? Venha significar-me. Sigamos significamando. 

Chuva-lágrima

E agora o céu está claro. Claro das nuvens das noites. Me faz pensar que o azul-preto das noites sejam farsas, tendas que Deus estende pra realçar as estrelas. O céu de verdade é dessa cor, a cor que não sei dizer qual é. Mas cor é cor, não é feita pra virar palavra. Enfim, nesse autêntico céu da noite não hesitam em cair as gotas d’água. Talvez elas devessem cair sempre, mas as nuvens azuis que escondem o fundo branco acinzentado dos dias ousam em retê-las. Acho que pegam essa água retida e formam os oceanos, que por isso são tão grandes e profundos. 

Mas a água das chuvas, essa eu não sei de onde vem. Diriam os refugiados na ciência que tudo é um ciclo, evaporação, transpiração, evapotranspiração e mais outras coisas em que não creio. E que diferença fará se eu acreditar que elas vêm do infinito? Que Alguém as cria especialmente pra nós e depois as orquestra num lençol eterno para que nos molhe e abençoe? Algumas molham, algumas fazem cócegas, algumas embaçam a lente do óculos. Mas pra quê enxergar as gotinhas transparentes? Se fossem para ser vistas, não faria sentido senti-las de forma tão singular. Bastava ver traços opacos em queda livre, sem graça alguma. E aquela sensação única de sentir uma gota no braço, mas não ter certeza... Suspense, até que suspenda-se em risos a dúvida da garoa, quando a sinfonia de águas começa a musicar. 

É algo tão especial que até a terra resolve se perfumar quando se molha com a chuva. Se perfuma e todo mundo sente, sente e adora. Adoro o barulho das gotas apavoradas com a ideia de terem deixado o paraíso e serem largadas até deitarem no chão. Mas ao mesmo tempo, talvez seja a maior das honras para uma gota de chuva o rapel pelo mundo da gente. Pena que muitos de nós teimemos em vaiar o que merecia aplausos. Ousamos em erguer um guarda-chuva, é como antecipar o fim das lágrimas do céu. 

Lágrimas, eis a chuva que Deus deixa pra gente criar. Um presente e tanto, eu diria. Não fomos feitos pra chorar em palavras, e por isso as lágrimas. E como as do céu, essas também vêm do infinito, do fundo inalcançável e invisível da alma, donde surgem nossos verdadeiros sentimentos. E nosso falso céu azul é o brilho falso dos nossos olhos quando ousamos criar falsos sentimentos. Mas no fundo, o melhor mesmo é deixar a chuva cair. Chuva que ainda que doa, também refresca, alivia. Quem nunca parou de chorar e se viu mais tranquilo, mais sereno? Não é que todos tenhamos lágrimas de fênix, mas a chuva-lágrima é com certeza cicatrizante. 

Pra não me estender, pensa você sozinho sobre as lágrimas de alegria e depois vai dançar na chuva, antes que tudo se finde e o sol seque as felicidades estampadas em seu rosto.

Rosas

Eis que pendem da alma lábios em sorriso. Olhares nos abrem o leque de sentimentos, e então encharcar-se em choro ou admirar amores torna-se questão de escolha. Colher o que plantou, nem sempre ousamos ser assim. Ficamos sentados de frente aos ramos verdes, vemos as flores crescerem, ou as folhas florescerem, e esperamos tudo murchar. Pousamos a cabeça sobre os punhos e regamos com lágrimas quem já não precisa ser regado. Descarregamos depois em novas poças lamentos vãos. Faltou rasgar-lhe o ramo e o fazer presente. Fazer dele um presente. Àquela outra flor que estende sua estação na esperança de se ver colhida. Acolhida. Pelo relutante egoísta que prefere murchar sozinho que acariciar as pétalas. Triste é ser silente a rosa, que sabe das coisas, mas nada diz. Ela chora, disfarçando de orvalho suas lágrimas, e só aponta seus espinhos quando lhe é urgente. E uns não são tão em vão assim. Quando escorre aquele fio d'água vermelha, é o coração que marca, arca, embarca. Assume em suas batidas as certezas que se lhe confiam, mas falha. Fala por dores o que deve ser feito, e se não convence, dá um nó tão apertado que é a alma quem pede socorro. Sufoco. E um pedacinho dela se sacrifica cada vez que a (in)consciência acalma o coração, quando haveria de ser o contrário, ora. Não demora para a alma dar um abraço no coração. Não um abraço apertado, porque lhes faltam força, mas um abraço. A indignação dos dois é inócua, meros sentimentos custam a se afirmar vitoriosos. Mas então a maldita subconsciência vem em piedade, quando a arritmia já lhe incomoda. É, não fosse por isso, ela ainda estaria esquadrinhando nossos sonhos loucos e salpicando déjà vu a torto e a direito. Mas ela vem. Abre-se, pois, espaço para os disparos e disparates do coração, e a alma torce clemente por flechas certeiras ou perfumes fatais. De fato, esse é o sonho da alma e da rosa, esta que pensa que já viveu isso antes, mas já duvida se foi só artimanha do infinito. Como se fizesse diferença... Bem me quer, mal me quer. De certa forma, tudo dependeu da primeira pétala. Então tudo é horário alternativo à pré-estreia? Que seja. A história é nova, a rosa é nova, a dor é outra. Porque nessa lenda de metáforas botânico-cardíacas o coágulo não existe. Bem, a não ser que aquele botão da roseira seja a rosa cativa do Pequeno Príncipe, talvez seja melhor buscar nos buquês da vida os espinhos mais doces, ou os mais amargos. Ou esquecê-los para sempre e esperar, quando retornarem, que estejam nas mãos da rosa preferida. Rosa de branco, num tapete de vermelhas rosas. “Sim, eu aceito!”

Eu te sinto, Eu te somos.

Eu te sinto. Não vejo, mas sinto. Estás escondido, mas algumas coisas não te deixam passar-se despercebido. Presente em coisas grandiosas, mas grandiosamente presente nos detalhes quase imperceptíveis. Venha, pode vir à tona, não se aflija com as ameaças que a luz faz a seus olhos. Deixe que ela penetre por eles e chegue a mim. A mim? Sim, a mim. Você sou eu. Você é meu escudo. Você sou eu subterfúgio. Você sou eu, ou eu te sou? Depende. Depende da coragem. Às vezes eu te sou. Me escondo, deixando transparecer meu eu apenas nos detalhes. Havia também vezes em que você me era. Surgia, enfrentava a luz que o cega e deixava o mundo enxergar o que teus olhos viam. Mas agora estás aí, recluso. Estamos, pois nesse momento eu te sou. Estou presa contigo. Estamos nos escondendo do que está lá fora. Deixamos nossos anseios pra trás. Ou eles nos deixaram? Talvez tenhamos sido abandonados por esperar demais. Com medo do medo deixamos de sonhar. Deixamos nossas vontades pra trás por desassossego com o mundo lá fora. Por que, amigo? O que somos, o lá fora ou o aqui dentro? Diga, somos o aqui dentro. Então por que deixamos com que o lá fora nos invadisse? Pior. Não deixamos ser invadidos e nem tentamos invadir o lá fora. Nos escondemos. Estamos aqui, trancados e sendo amedrontados pela luz e pela ameaça de invasão. Mudou o lá fora? Não. O lá fora te mudou. Nos mudou, afinal, já sabe. O lá fora nos mudou porque deixamos. O lá fora nos mudou porque permitimos que a invasão nos alcançasse. E o aqui dentro, onde está? Estamos no aqui dentro. Estamos presos em nosso interior. Estamos aqui, brindando com nossos sonhos e ideias. Poético, não? Não. Poético seria deixá-los invadir o lá fora. Só assim teriam chance de sobreviver, realizar-se, desdobrar-se. O que nos invadiria seriam apenas as realizações. Mas não, eles estão aqui conosco, e nós todos estamos presos na redoma que construímos com medo da invasão. Tivemos medo de mudar o lá fora, mas o lá fora não hesitou em causar-nos mudança. Me diga, amigo, novamente. Somos o lá fora ou o aqui dentro? O aqui dentro. Sim, amigo. Somos o aqui dentro, mas não devemos habitar aqui. Vamos desconstruir essa redoma. O lá fora não vai nos invadir se o aqui dentro passar a nos habitar, e não o oposto. Sim, o aqui dentro deve nos habitar e nos preencher, nos tomar, nos invadir e nos transbordar. Não tenhamos medo do desassossego do lá fora. Vamos apenas ser o aqui dentro. Se o lá fora não gostar, que se enclausure. Vamos invadi-lo, jamais o oposto.  Vem comigo, vem me ser? Vamos.  Deixa chover essa redoma. Após a chuva nosso eu será o arco íris. Venha amigo, venha à tona. A luz não mais nos cegará, estamos unidos, já posso ver pelos seus olhos. Nem mais te sou nem tu me és. Apenas somos. Não me é mais subterfúgio, pois não queremos mais nos esconder.  Somos sem escudo, sem redoma, sem proteções. Deixamos o esconderijo do aqui dentro e agora ele habita dentro de nós. E está vivo, pulsante. Nossos sonhos agora brindam o “nós”. Brindam por nós, se alimentam do “nós”.  Nem eu te sou nem tu me és. A luz penetrou por seus olhos e chegou a nós. E não foi invasão, só chegou porque permitimos. O lá o fora? Ele que se invada conosco. Se invada de nós. Eu te sinto. Te sinto e agora te vejo. Eu te sou amigo, eu te somos. Diga amigo, novamente, e o lá fora? Ele que se invada conosco. Ele que se invada de nós.